A posição proeminente da Palavra como Primogênito entre as criaturas de Deus, como aquele por meio de quem Deus criou todas as coisas e como Porta-voz de Deus, oferece uma base real para ele ser classificado como “um deus” ou poderoso – Estudo Perspicaz, Vol.2, pp. 536
É bem verdade que para alguns Jesus deve ser chamado de “um deus”, e que tal ensino reflete o ensino dos cristãos primitivos. Os Testemunhas de Jeová, que se consideram a única religião verdadeira, aquela que protege o ensino dos apóstolos por meio de um grupo de anciãos separados nos fins dos tempos para salvaguardar as escrituras, acreditam que Jesus deva ser chamado de “um deus”.
Essa visão é bem conhecida em sua tradução de João. 1.1: “No princípio era a Palavra, e a Palavra estava com o Deus, e a Palavra era [um] deus”. Como portadores do ensino verdadeiro das escrituras, os Testemunhas de Jeová consideram que ao traduzir desse modo esse texto estão refletindo o ensino dos cristãos primitivos. Mas, será isso verdade?
Será que existem evidências entre os textos dos cristãos primitivos, especialmente aqueles que viveram antes do Concílio de Nicéia, de que Jesus era considerado como um deus? Será que os cristãos primitivos chamavam a Jesus de um deus? Nesse post, veremos dois deles: Inácio de Antioquia e Tertuliano.
A. Inácio de Antioquia
As informações sobre nascimento e morte de Inácio não são tão exatas como os dos Pais posteriores. Em geral, seu nascimento é atestado antes do ano 50, mas há quem defenda que teria sido por volta do ano 35 d.C. Sobre sua morte, o assunto também é controverso, pois há quem defenda que Inácio teria morrido ainda no primeiro século (97d.C), outros dizem que seria próximo ao ano 117 d.C. Seja como for, alem da proximidade temporal com os apóstolos, é possível ainda que ele tivesse sido ensinado pelo Apóstolo João. Se Eusébio está certo (História Eclesiástica, II, ii, 22), Inácio teria sido o terceiro bispo de Antioquia após Evódio e o Apóstolo Pedro. Se Teodoret está certo (Dial. Immutab., I, iv, 33a), o próprio Pedro teria apontado Inácio como possível bispo de Antioquia.
Inácio de Antioquia é provavelmente o mais antigo Pai da Igreja ao citar Jo.1.1. A primeira citação é assim declarada:
Como podemos chamá-lo de mero homem, recebendo sua existência de Maria e não de Deus, a Palavra, o unigênito Filho? Pois, ‘no princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus e o Verbo era Deus (Aos Tarsianos, Cap.6)
Em sua carta “Aos antioquianos”, Inácio inicia sua carta com a pretensão de alertar seus leitores das distorções do cristianismo. Sobre isso ele diz:
Mas, vocês receberam a doutrina dos apóstolos e acreditam tanto na lei como nos profetas. Assim vocês rejeitam os erros dos judeus e dos gentios, e não introduzem uma multiplicidade de Deus, nem ainda negam a Cristo debaixo da alegação da manutenção da unidade de Deus (Aos Antioquianos, 1)
Após essa declaração, Inácio passa a descrever a respeito da verdadeira doutrina de Deus e Cristo. Por isso, ele defende a unidade de Deus nas palavras de Moisés (Aos Antioquianos, 2; cf. Dt.6.4), Isaías (Aos Antioquianos, 3; cf. Is.44.6) e do Apóstolo João (Aos Antioquianos, 4; cf. Jo.17.3). Para Inácio não existe como negociar essas informações pois elas são ensinadas pela Lei, Profetas e pelos Apóstolos. Mas, no que se refere ao Filho, Inácio quando o apresenta cita Is.9.6 como evidência de sua identidade com Deus. Ele também fala sobre sua encarnação (Aos Antioquianos, 3 cf. Is.7.14, Mt.1.23) e paixão (Aos Antioquianos, 3; cf. Is.53.7; Jr.11.19).
Após tantas informações em tão pouco espaço, Inácio pretende demonstrar que as verdades anunciadas pelos Profetas também é demonstrada pelo ensino apostólico de tal forma que eles não têm qualquer embaraço em defender a encarnação, ou paixão do verbo. Sobre isso ele diz:
O Evangelista, também declara que o Pai é o único e verdadeiro Deus, mas não omite o que é concernente ao nosso Senhor, mas diz: ‘No princípio era o verbo e o verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus. Ele mesmo estava no início com Deus e todas as coisas foram feitas por meio Dele, e sem Ele nada do que foi feito se fez’. Com relação a encarnação do Verbo diz: O Verbo se fez carne e habitou entre nós’. E novamente: ‘Livro da genealogia de Jesus Cristo, o Filho de Davi, Filho de Abraão’. E os mesmos apóstolos que afirmam que existe apenas um Deus, também falam sobre o único Mediador entre Deus e os Homens (Aos Antioquianos, cap.4)
É interessante notar que tão cedo Inácio já teria falado sobre a relação da informação de que Deus é Um, mas que Cristo também é Deus e não outra entidade. Para Inácio, isso seria uma afronta à Lei e aos Profetas. Muito embora, nessas citações a divindade de Cristo tenha ficado implícito, a opinião de Inácio sobre o assunto não era. Observe o que ele diz: “Nosso Deus, Jesus Cristo, tomou carne no seio de Maria, segundo o plano de Deus” (Aos Efésios, 18,2). Em sua Carta aos Romanos, ele inicia assim:
Inácio, à Igreja amada e iluminada segundo a fé e a caridade, de Jesus Cristo nosso Deus, deseja todo o bem e irrepreensível alegria em Cristo Jesus Nosso Deus
É bem interessante que, mesmo sendo bem anterior a Tertuliano, Inácio também já tinha uma boa visão da Trindade:
Procurai manter-vos firmes nos ensinamentos do Senhor e dos apóstolos, para que prospere tudo o que fizerdes na carne e no espírito, na fé e no amor, no Filho, no Pai e no Espírito, no princípio e no fim, unidos ao vosso digníssimo bispo e à preciosa coroa espiritual formada pelos vossos presbíteros e diáconos segundo Deus. Sejam submissos ao bispo e também uns aos outros, assim como Jesus Cristo se submeteu, na carne, ao Pai, e os apóstolos se submeteram a Cristo, ao Pai e ao Espírito, a fim de que haja união, tanto física como espiritual (Aos Magnésios, 13, 1-2)
Ao que se pode ver com clareza é que bem cedo, a concepção da Divindade de Cristo já era declarada e uma visão da Trindade já esboçada, muito antes do Concílio que a oficializou como Doutrina do Cristianismo. Mas interessante é que mesmo Inácio já utilizava Jo.1.1 como evidência da divindade de Cristo em um ambiente em que defendia a Unidade do Mesmo com Deus. Portanto, um leitor de grego não viu uma outra entidade, ou um outro deus em Jo.1.1 e assim ensinou em conformidade com o ensino da Lei, Profetas e dos Apóstolos.
B. Tertuliano
Tertuliano nasceu em Cartago (norte do Egito) por volta de 150 e 155 d.C., estudou Direito e exerceu a profissão em Roma. Tinha o domínio da língua grega e possuía grande erudição em filosofia e história. Entre os anos 190 e 195 d.C. converteu-se ao cristianismo provavelmente em Roma, e passou a dedicar-se ao estudo da literatura cristã. Pouco tempo depois voltou a Cartago, onde foi ordenado presbítero e lá viveu até a sua morte que ocorreu entre os anos 222 e 225 d.C. Entre vários outros acontecimentos em sua vida, merece destaque que ao fim de sua vida Tertuliano teria se simpatizado com o Montanismo, por seu zelo ascético.
Sobre Tertuliano, uma informação inicial é importante: Ele provavelmente traduziu todas as suas citações do grego para o latim, idioma que também tem a peculiaridade da falta de artigo indefinido. Entretanto, é digno de nota que, em nenhum comentário Tertuliano teria considerado Jesus Cristo como um deus à parte do Deus Pai, muito pelo contrário, ele é um grande defensor do inverso. Ou seja, embora o idioma não tivesse artigo indefinido, ele poderia compreender uma sentença com esse sentido em ambos os idiomas. Mas, esse fato nunca ocorreu com Jo.1.1.
Tertuliano cita e interpreta Jo.1.1 sob basicamente dois pontos de vista: da Criação e da Declaração da Divindade de Cristo. Quando fala da Criação, é comum Tertuliano levantar uma identidade de Cristo com o Deus, o Pai. No capítulo 20 de sua obra contra Hegémones, Tertuliano trata de demonstrar como o Pai é o responsável pela criação, em referência ao texto de Genesis 1.1. E quanto a isso, ele não tem dúvidas.
Entretanto, ele reconhece que essas não são as únicas informações que dispõe para falar sobre o assunto, e afirma:
Concluindo, eu vou aplicar o Evangelho como um testemunho complementar ao Antigo Testamento[1]”. Nessa ocasião, Tertuliano cita Jo.1.1-2, nas seguintes palavras: “‘No princípio era o Verbo’ – isto é, no mesmo início, claro, em que Deus fez os céus e a terra – ‘e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus. Todas as cosias foram feitas por Ele, e sem Ele nada do que foi feito se fez.
A nota que Tertuliano faz ao texto é uma clara demonstração da sua visão da Identidade do Filho com o Pai. Contra Práxeas, Tertuliano também apresenta sua visão de Identidade do Filho com o Pai. No capítulo 27 de sua obra intitulada Contra Práxeas, Tertuliano estende sua visão ao apresentar não apenas a estreita ligação entre o Pai e o Filho, mas também demonstra sua preexistência:
no preâmbulo de João em seu Evangelho, ele nos demonstra o que Ele existia antes de ser feito carne: ‘No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus e o Verbo era Deus’ Ele estava no princípio com Deus ‘e ‘todas as coisas foram feitas por Ele e sem Ele nada do que foi feito se fez’. Agora, como essas palavras não podem ser tomadas de outra forma além da que foram escritas, foi demonstrado, sem dúvidas, que existe Um que existe desde o princípio, e Um com quem Ele estava: um é o Verbo de Deus, o outro Deus e o Verbo também é Deus, mas Deus como o Filho e não como o Pai
Essa conexão que Tertuliano faz entre Deus, o Pai e Jesus, o Deus Filho é, segundo ele, bem apresentada nas escrituras e não deveriam ser entendidas de outra forma. Deve ser por isso, que em sua Obra Ressurreição da Carne, no capítulo 6, essa identidade é levada a uma compreensão bem interessante de Gênesis 1: “Por que o Pai disse anteriormente ao Filho: Façamos o homem em nossa própria Imagem, e em nossa Semelhança”. Para Tertuliano, a relação de igualdade entre o Filho e o Pai era tão acertada que entende que o plural encontrado no verbo “fazer” em Gênesis, expressa um diálogo entre os dois. Novamente, para defender sua opinião ele cita Jo.1.1 como defesa dessa identidade e acresce um verso também interessante: “E o Verbo também era Deus sendo também a imagem de Deus ‘não julgou como roubo o ser igual a Deus’”.
Essa conexão entre Jo.1.1 e Fp.2.6 é bem interessante, pois para Tertuliano, a expressão “τὸ εἶναι ἴσα Θεῷ” (o ser igual a Deus) era identificada com “καὶ Θεὸς ἦν ὁ Λόγος” (e o verbo era Deus). Conexão que fez em outras ocasiões. Contra Práxeas, no capítulo 7 ele diz:
‘O Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus’. Também está escrito: ‘Não tome o nome de Deus em vão’. O que é certo é que ele é quem ‘sendo forma de Deus, não julgou roubo o ser igual com Deus’
Entretanto, Tertuliano apresenta outras conexões textuais quando fala da Divindade de Cristo. Para ele é claro que Jo.1.1 fala claramente sobre o assunto, mas ele também evidencia que isto está em acordo com as Escrituras. No capítulo 13 de sua obra Contra Práxeas, ao comentar sobre a Trindade diz:
Isto é um uma grande declaração, que você irá encontrar expressamente no Evangelho: ‘No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus’.Havia Um ‘que era’ e outro com quem ‘estava’ e era. Mas, eu encontro nas Escrituras o nome SENHOR [Κύριος] também aplicado a ambos: ‘O Senhor disse ao meu Senhor assenta-te à minha direita’
Aqui Tertuliano faz a aplicação do Sl.109.1 à pessoa de Cristo, tal como o próprio Cristo teria feito segundo o relado dos evangelhos sinóticos (Mt.22.44; Mc.12.36; Lc.20.42) ou mesmo Pedro teria feito em sua primeira pregação em Atos (At.2.34). Ou seja, Tertuliano não está inovando, ele está seguindo aquilo que as escrituras o haviam ensinado. Só existe uma forma para se compreender como o Filho de Davi, o Cristo, poderia ser Senhor de Davi: Sendo Ele mesmo Deus. Assim, é claro para Tertuliano que existia o Deus Pai e o Deus Filho. Mas, será que Tertuliano entendia isso como existindo dois deuses? É evidente que não. Observe sua declaração no capítulo 12 de sua obra Contra Práxeas:
Agora, se Ele [o Verbo] também é Deus, de acordo com João que diz: ‘e o verbo era Deus’ então você tem dois Seres – Um que comanda às coisas à existência, e Outro que executa a ordem e cria. Nesse sentido, entretanto, você deveria entendê-lo como sendo outro no sentido de Personalidade, não em substância- em distinção não em divisão, como já expliquei.
Há ainda mais uma ocasião em que Tertuliano cita Jo.1.1 que merece nossa atenção. No capítulo 27 da obra Contra Práxeas, Tertuliano faz uma declaração sobre a Cristologia que viria a ser definida dois séculos mais tarde em Constantinopla. Nessa declaração ele afirma a União Hipostática da Pessoa de Cristo, observe:
Nem a carne tornou-se espírito, nem o espírito tornou-se carne. Em uma pessoa não existe dúvidas de que é possível coexistirem. Assim, Jesus consiste – Homem no que se refere a carne; e no que se refere ao Espírito, Deus – e o anjo o designa como ‘Filho de Deus’ em respeito à sua natureza, que era em Espírito, reservando para a carne a afirmação ‘Filho do Homem’. De igual modo, o apóstolo o chama de ‘Mediador entre Deus e os Homens’ e afirma sua participação em ambas as substâncias. Agora, para encerrar o assunto, você que acredita que o Filho de Deus é carne, nos demonstre o que Filho do Homem significa? Será ele então, quero saber, o Espírito? Mas você insiste que o Pai mesmo é o Espírito, no que se refere a ‘Deus é Espírito’, como se nós não lêssemos que existe um ‘Espírito de Deus’. Do mesmo modo como encontramos ‘e o Verbo era Deus’ também encontramos o Verbo de Deus
Na visão de Tertuliano fica evidente que texto lia: “e o Verbo era Deus”. Como poderia um leitor de grego e latim, em tradução e comentários, não considerar outra possibilidade para o texto? Do modo como Tertuliano trata o texto e como ele ensina, fica claro que ele não poderia chamar Jesus de um deus, e nem mesmo argumenta a favor dessa hipótese.
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