Por volta do ano de 62, em uma prisão na cidade de Roma, Paulo escreveu uma epístola à igreja da cidade de Filipos. A igreja tinha demonstrado grande cuidado para com ele, além das várias ofertas generosas que fizeram (Fp 4:10-20). Talvez por isto a epístola tenha um tom tão alegre, caracterizado principalmente pela frase “Regozijai-vos sempre no Senhor; outra vez digo, regozijai- vos” (Fp 4:4). Não poderia deixar de faltar também as várias exortações e conselhos dados pelo apóstolo aos cristãos de Filipos.
É em uma destas exortações que se encontra uma das declarações cristológicas mais importantes das Escrituras. Em algumas versões do texto, temos:
Tende em vós o mesmo sentimento que houve também em Cristo Jesus, pois ele, subsistindo em forma de Deus, não julgou como usurpação o ser igual a Deus; antes, a si mesmo se esvaziou, assumindo a forma de servo, tornando-se em semelhança de homens; e, reconhecido em figura humana, a si mesmo se humilhou, tornando-se obediente até a morte e morte de cruz. - Filipenses 2:5-8
Outros textos no entanto trazem o seguinte:
Tende em vós aquele sentimento que houve também em Cristo Jesus, o qual, subsistindo em forma de Deus, não considerou o ser igual a Deus coisa a que se devia aferrar, mas esvaziou-se a si mesmo, tomando a forma de servo, tornando-se semelhante aos homens; e, achado na forma de homem, humilhou-se a si mesmo, tornando-se obediente até a morte, e morte de cruz. - Filipenses 2:5-8
As duas possíveis traduções têm alimentado várias discussões entre defensores da doutrina da Trindade e aqueles que a criticam. Afinal de contas, Jesus não queria se apegar à igualdade com Deus, ou Jesus não considerou a hipótese de usurpar a igualdade com Deus?
Analisaremos aqui como este texto é uma testemunha importante para a divindade de Cristo, independente de qual forma ele é traduzido. Veremos também como muitos críticos à doutrina da Trindade tentam diminuir a força deste texto.
Como entender a mensagem do texto
Muitas pessoas que negam a divindade de Cristo costumam adotar a tradução onde Jesus não teria considerado a hipótese de usurpar a igualdade com Deus. Isto por que, se Jesus é Deus, ele não precisaria usurpar uma igualdade com Deus. Ele já a teria. Por isto a sua linha de discussão aqui é defender a segunda tradução como tradução válida. Se ela for válida, então ele não precisa entender que o texto declara a divindade de Cristo. E assim, o crítico da doutrina da Trindade busca até tradutores trinitaristas que adotam esta tradução como forma de argumentação.
No entanto, estas pessoas não se dão conta de que mesmo esta tradução estabelece a divindade de Cristo. O fato de que tradutores trinitaristas também a adotam deveria ser um indício para eles de que a tradução não prejudica a doutrina da Trindade.
A variação de tradução do versículo 6 se deve principalmente à palavra ἁρπαγμός. Ela pode significar usurpar ou coisa a se apegar. Os dicionários nos trazem aquilo que é conhecido como significado não afetado de uma palavra, isto é, tudo que uma palavra pode significar. Isto não significa que quando a palavra é usada, ela possa ser substituída por qualquer definição encontrada no dicionário, muito menos que podemos escolher qualquer definição listada ali. O que vai definir o significado de uma palavra, dentre aqueles listados no dicionário, é o contexto. Assim, diante dos significados apresentados para ἁρπαγμός, qual deles de fato se encaixam no contexto?
Tudo irá depender de outra palavra presente no versículo: ὑπάρχω, que é traduzida por “subsistindo”. A palavra é um particípio, e como particípio ela pode estar sendo empregada aqui de duas formas possíveis: ela pode ser um particípio concessivo ou um particípio causal. O particípio concessivo indica que algo é feito “a despeito de” ou “embora” outra coisa aconteça. Neste caso, portanto, ὑπάρχω seria traduzido como “embora subsistindo ...” ou “apesar de existir ...”. O particípio causal, no entanto, informa a causa para que algo aconteça. A tradução de ὑπάρχω neste caso seria “por subsistir ... é que...”1.
Sendo assim, temos duas traduções possíveis. Se ὑπάρχω for um particípio concessivo, o único significado que podemos escolher para ἁρπαγμός é coisa a se apegar. Nesta situação, Paulo estaria dizendo que Jesus mesmo sendo Deus e tendo o direito a toda glória, não se apegou à sua divindade. Ele abriu mão de toda a honra que lhe era devida para se tornar servo. Houve aqui uma concessão: Jesus se tornou servo mesmo sendo Deus. Esta é a tradução defendida por muitos trinitaristas e que muitos críticos da Trindade negam como válida.
Por outro lado, a segunda opção é possível se ὑπάρχω for um particípio causal. Para este caso, ἁρπαγμός significaria usurpação. E curiosamente aqui vemos o mesmo raciocínio que apresentamos no início desta seção. Paulo estaria dizendo que Jesus não pensou em usurpar a igualdade com Deus. Por quê? Por que ele já subsiste em forma de Deus. Aqui ὑπάρχω nos fornece os motivos para que Jesus não tenha feito esta consideração.
Assim, de uma forma ou de outra, a divindade de Cristo é proclamada por Paulo aqui. Ela pode ser aquilo a que Cristo não quis se apegar ou pode ser o motivo pelo qual Cristo não buscou uma usurpação. Mas será que podemos definir qual das duas traduções é melhor para este texto?
Para isto, precisamos entender melhor o contexto da passagem. Como já foi dito, o versículo 6 faz parte de uma exortação de Paulo aos filipenses. Ele desejava incentivar a unidade entre eles, como podemos ver pelos primeiros versículos:
Portanto, se há alguma exortação em Cristo, se alguma consolação de amor, se alguma comunhão do Espírito, se alguns entranháveis afetos e compaixões, completai o meu gozo, para que tenhais o mesmo modo de pensar, tendo o mesmo amor, o mesmo ânimo, pensando a mesma coisa; nada façais por contenda ou por vanglória, mas com humildade cada um considere os outros superiores a si mesmo; não olhe cada um somente para o que é seu, mas cada qual também para o que é dos outros. - Filipenses 2:1-4
É um problema muito comum de nossos dias a questão dos “direitos iguais”. Todos nós queremos exigir nossos direitos sem nos preocupar com nossos deveres. E sempre que vemos algum semelhante sendo beneficiado de alguma forma, nós protestamos com base em nossa igualdade. “Somos todos iguais, temos que ter mesmos direitos!” É muito fácil perceber como este tipo de sentimento pode causar divisões em qualquer meio.
Provavelmente por isto Paulo faz esta exortação aqui. Nós todos somos salvos da mesma forma, somos todos igualmente irmãos e igualmente filhos adotivos de Deus. Mas não devemos nos apegar a esta igualdade na igreja, devemos considerar cada irmão superior a nós mesmos (versículo 4).
Este foi o mesmo sentimento que Jesus teve antes da Encarnação. Ele e o Pai eram iguais. Mas Cristo não se apegou a esta igualdade, exigindo seus direitos como muitos hoje em dia fazem. Ele se esvaziou e se tornou servo e obediente, ele considerou o Pai como superior. Há aqui um claro paralelo entre o que Cristo fez e o que Paulo gostaria que os filipenses fizessem. Se Jesus em nenhum momento foi igual ao Pai, então o paralelo criado por Paulo não serve como exemplo para o que está sendo discutido aqui.
É interessante como aqui uma simples letra faz uma enorme diferença no texto. O versículo 7 diz que Jesus se (εαυτον) esvaziou. Se a palavra usada fosse αυτον (ele), poderíamos entender que foi o Pai quem esvaziou o Filho. Mas o que Paulo diz para nós é que isto foi uma opção do próprio Cristo: ele se esvaziou de sua própria vontade, o que combina muito bem com uma exortação à humildade. Muitos críticos da Trindade também serão obrigados aqui a refletir melhor sobre a ênfase que possam dar a “o Filho de si mesmo nada pode fazer” de João 5:19: se ele não pode fazer nada de si mesmo, como ele pôde então se esvaziar? Não é melhor entender João 5:19 à luz de sua humilhação do que entendê-lo como uma declaração de inferioridade?
Temos aqui portanto uma exortação à humildade. É por este motivo que a tradução “não julgou como usurpação o ser igual a Deus”, embora possível, não poderia ser aplicada a este texto. Se considerássemos que Cristo é uma criatura, como muitos críticos da Trindade tentam alegar aqui, então não usurpar a igualdade com Deus seria um exemplo de obediência, não de humildade. De qualquer forma, nenhuma das sugestões apresentadas pelos críticos consegue se encaixar neste texto.
Negando a mensagem do texto
Há várias formas usadas pelos críticos da doutrina da Trindade, para diminuir o testemunho deste texto. Todos eles estão relacionados com a variedade de significados que as palavras presentes no texto podem ter.
A primeira palavra discutida é μορφή, que é traduzida por forma. O que é a forma de Deus? Alguns chamam a atenção para o fato de que a forma é muitas vezes aplicada à aparência física, como temos em Marcos 16:12:
(Mc 16:12) Depois disso manifestou-se sob outra forma a dois deles que iam de caminho para o campo,
Também temos a mesma palavra aplicada a estátuas (como por exemplo em A vida de Flávio Josefo, 65), forma corporal (Jó 4:16 na LXX), aparições em visões (como em Antiguidades Judaicas de Flávio Josefo, 5, 213). Na filosofia, a palavra forma tinha amplo uso, e estava relacionado com a essência das coisas, como nos informa N.R. Champlin:
1. Nos escritos de Platão, a palavra grega eidos é um possível sinônimo para os universais (vide). Nesse caso, «forma», «ideia» e «universais» seriam meros sinônimos. Oferecemos um extenso artigo sobre os universais. A forma ou universal é aquela entidade perfeita, eterna e imutável, copiada pelos particulares, ou seja, pelos objetos e entidades terrenos, mas que encontram consubstanciação na realidade dos universais.
[...]
3. Aristóteles, em seu realismo moderado (o universal ou forma seria a realidade), não distinguia a forma do particular, exceto no caso de Deus, o Impulsionador Inabalável. Tudo o mais seria movido
por esse impulsionador. Em um outro sentido, a palavra «forma» é usada para indicar o fator
determinante intrínseco de qualquer ser. Quanto aos seres materiais, a forma é aquilo que especifica e determina as espécies diferentes. A forma seria mais real do que a matéria; mas, no caso dos objetos físicos, a forma não pode existir por si mesma, separada da matéria, pelo que seria menos real do que as substâncias individuais2.
Com uma gama tão variada de significados, qual seria o melhor significado para forma aqui? É interessante observar que forma no versículo está sendo modificado por Deus. Seria adequado falar de uma aparência de Deus aqui?
Considerando que ὑπάρχω seja causal, temos que é por Jesus possuir a forma de Deus, que ele não buscou uma igualdade com Deus. Assim, para a tradução preferida dos críticos da doutrina da Trindade fazer sentido, o próprio fato de possuir a forma de Deus já confere a Cristo a igualdade com Deus. Dificilmente esta igualdade poderia ser obtida pelo simples fato de se ter uma “aparência de Deus”. Mas é muito simples perceber como ter essência divina confere esta mesma igualdade. O mesmo pode ser dito da primeira tradução: embora tendo a essência divina, Jesus não se apegou a ela. Traduzir forma por aparência aqui não faria muito sentido. Robertson faz aqui uma boa explicação da palavra:
Morphē significa os atributos essenciais como mostrado na forma. Em seu estado pré-encarnado, Cristo possuía os atributos de Deus e assim apareceu àqueles no céu que o viram. Aqui há uma clara declaração da deidade de Cristo por Paulo3.
A segunda palavra discutida é ὑπάρχω. Alguns dicionários listam esta palavra como significando “começar, nascer, ser o iniciador, dar início”4. A conclusão aqui é que Jesus em algum momento passou a existir na forma de Deus. Para entendermos melhor como esta tradução não é possível, vamos verificar a importância do tempo verbal para um particípio, segundo Daniel B. Wallace:
O tempo da natureza verbal do particípio requer cuidadosa consideração. Em geral, os tempos se comportam da mesma forma que no indicativo. A única diferença é que agora o ponto de referência é o verbo principal, não o emissor. Assim, o tempo nos particípios é relativo (ou dependente), enquanto no indicativo, absoluto (ou independente).
O particípio aoristo normalmente denota um tempo antecedente ao verbo principal. Mas se o verbo principal também for aoristo, esse particípio indicará tempo simultâneo. O particípio perfeito também indica tempo anterior. O particípio presente é usado durante o tempo simultâneo (Essa simultaneidade, porém, é frequentemente concebida, dependendo em particular do tempo do verbo principal). O particípio futuro denota tempo subsequente5.
A palavra ὑπάρχω é um particípio presente, e como vimos, o particípio presente ocorre simultaneamente à ação do verbo principal, que no nosso caso é considerou. E ninguém poderia considerar alguma coisa ao mesmo tempo que nasce ou é criado.
Por outro lado, novamente empregando esta tradução em nosso contexto, dificilmente o fato de se nascer com aparência de Deus forneceria um motivo para não se usurpar a igualdade com Deus.
A terceira palavra discutida aqui é ἁρπαγμός, que já foi analisada quando explicamos a mensagem do texto, acima.
Percebe-se aqui que embora os críticos da doutrina da Trindade sugiram muitas formas diferentes de se traduzir estas palavras, obviamente eles não empregam estas sugestões dentro do contexto de Filipenses 2. Segundo eles, qual a mensagem que este texto nos transmite? Eles não conseguem empregar suas sugestões e ao mesmo tempo mostrar como este texto nos ensina a humildade. O texto é totalmente desfigurado simplesmente para se evitar que o texto considere Jesus como igual a Deus.
Conclusão
O texto de Filipenses 2 nos fornece uma grande exortação à humildade. Somos incentivados pelo próprio exemplo de nosso Senhor que, tendo direito a toda honra e toda glória, abriu mão disto para servir ao Pai e conseguir para nós a Salvação. Se o próprio Cristo fez tudo isto, por que não podemos fazer o mesmo?
Diante de tão maravilhosa mensagem, temos o primeiro exercício de humildade diante de nós, ao aceitarmos a mensagem do texto, não tentando impor nossos próprios conceitos sobre ela.
Notas
1. Mais sobre os particípios causais e concessivos pode ser lido em Wallace, Daniel B., Gramática Grega, Uma sintaxe exegética do Novo Testamento (Editora EBR), pág. 631, 632, 634 e 635.
2. N.R. Champlin, Enciclopédia de Bíblia, Teologia e Filosofia (Editora Hagnos), Volume 2, página 805.
3. A. T. Robertson, Word Pictures in the New Testament, comentário de Filipenses 2:6.
4. Tais definições podem ser encontradas em Isidóro Pereira, S. J., Dicionário Grego-Português e Português-Grego, 5ª Edição; e no o Dicionário Grego do Novo Testamento de James Strong, anotado pela AMG, que faz parte do apêndice da Bíblia de Estudo Palavras-Chave Hebraico e Grego - Edições CPAD – 2011, pág. 2436.
5. Wallace, Daniel B., Gramática Grega, Uma sintaxe exegética do Novo Testamento (Editora EBR), pág. 614
Comentários
Acho que parte da confusão se deve ao fato de você imaginar Deus como uma figura, física. Deus não é limitado por nada (senão o que o limita seria maior que Ele), por isto não devemos imaginá-lO como um ser físico.
para Jesus ser igual á Deus ele teria de se separar do Deus Pai e Deus Espirito santo e unir-se à mais duas faces de um Deus Pai e um Deus Espirito Santo. Poderia me explicar melhor pois o primeiro Deus que Jesus fazia parte ficaria sem uma das três faces que compõem Deus. E apenas duas não compõe o Deus.
E aonde Jesus encontraria outros duas faces diferentes para ele se compor um deus igual ao outro. que já não seria Deus por ter ficado com apenas duas faces ?
Aguardo resposta, não sei se me compreendeu.
o próprio fato de possuir a forma de Deus já confere a Cristo a igualdade com Deus.
O texto é totalmente desfigurado simplesmente para se evitar que o texto considere Jesus como igual a Deus.
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