Qual é então o problema? O de um universo que contém muitas coisas evidentemente más e aparentemente desprovidas de sentido, mas que contém igualmente criaturas como nós, que sabem que existem coisas más e absurdas. Ora, há apenas dois pontos de vista que levam em consideração todos os dados desse problema. Um deles é o cristão, segundo o qual este mundo é um mundo bom que se corrompeu em boa parte, mas que continua a manter viva a memória do que deveria ter sido. O outro é o do chamado dualismo, segundo o qual há dois poderes iguais e independentes por trás de todas as coisas, um bom e outro mau, e este universo é o campo de batalha em que travam um contra o outro uma guerra sem fim. Pessoalmente, penso que, depois do cristianismo, o dualismo é a ideologia mais nobre e sensata que se encontra à disposição no mercado. Mas padece de um defeito de fabricação.
Os dois poderes, ou espíritos, ou deuses – o bom e o mau -, são vistos como completamente independentes. Ambos existem desde toda a eternidade. Nenhum deles fez o outro, nenhum deles tem mais direito que o outro de chamar-se Deus. Cada um, presumivelmente, pensa que ele é que é bom e outro é mau. Um deles aprecia o ódio e a crueldade, o outro prefere o amor e a misericórdia, e cada um está disposto a defender o seu ponto de vista. Ora bem, que queremos nós dizer quando chamamos a um deles o Poder Bom e ao outro o Poder Mau? Há apenas duas opções: ou estamos dizendo simplesmente que preferimos um ao outro – como quem prefere cerveja a vinho -, ou estamos dizendo que um deles realmente está errado ao considerar-se bom, pouco importando o que eles próprios pensem a respeito um do outro e qual deles nós, os homens, prefiramos no momento.
Ora, se o que queremos dizer é apenas que, pessoalmente, preferimos o Poder Bom, então temos que deixar de lado de uma vez por todas as expressões “bem” e “mal”. Porque a palavra Bem significa justamente aquilo que se deve preferir sempre, sejam quais forem os nossos gostos ou disposições num determinado momento. Se “ser bom” não significasse mais do que alistar-se na facção que nos “caiu bem” sem termos qualquer motivo real para fazê-lo, então o Bem não mereceria ser chamado Bem. Portanto, afirmar que há um “Poder Bom” e outro “Mau” só faz sentido se pretendemos significar que um deles está objetivamente errado e o outro objetivamente certo.
No momento em que reconhecemos esta verdade, porém, estamos aceitando implicitamente que existe no universo uma terceira coisa além desses dois poderes: algum tipo de lei, de padrão ou regra do bem, com o qual um desses poderes – o bom – está de acordo, e o outro não. Mas, se ambos devem ser julgados por esse padrão, então esse mesmo padrão – ou o Ser que o fez – é anterior e superior aos dois: ele é que é o verdadeiro Deus. Na verdade, o que queríamos dizer ao falar num Poder Bom e num Poder Mau era apenas que um deles está na relação correta com o verdadeiro e definitivo Deus, e o outro numa relação errada.
Podemos chegar à mesma conclusão por outro caminho. Se o dualismo fosse verdadeiro, o Poder Mau teria que consistir num ser que amasse a maldade pela maldade. Ora, não conhecemos absolutamente ninguém que ame a maldade simplesmente por ser má. O que mais se aproxima disso é a crueldade. Mas, na vida real, uma pessoa só é cruel por uma de duas razões: ou porque é sádica, isto é, sofre de uma perversão sexual que a faz encontrar prazer na prática da crueldade; ou porque é capaz de tirar da crueldade algum benefício, como dinheiro, poder ou segurança. Mas o prazer, o dinheiro, o poder e a segurança são coisas boas em si mesmas, embora apenas de maneira limitada. O mal consiste em procurar obtê-las por métodos errados, ou por meios ilícitos, ou ainda em medida excessiva.
Não quero dizer com isto que uma pessoa que pratique a crueldade não possa ser terrivelmente perversa. Quero dizer que a maldade, se nos detivermos a examiná-la, se revela apenas como procura de algum bem de uma maneira errada. Ou seja, podemos ser bons por simples amor à bondade, mas não podemos ser maus por simples amor à maldade. Podemos realizar uma ação boa quando não nos sentimos bons nem nos dá prazer nenhum realizá-la, unicamente porque a bondade é correta; mas nunca ninguém cometeu uma ação cruel unicamente porque a crueldade é errada – mas apenas porque a crueldade lhe era aprazível ou útil. Noutras palavras, a maldade não consegue sequer ser má da mesma forma que a bondade é boa. A bondade é, por assim dizer, ela mesma; a maldade não passa de bondade corrompida.
(C. S. Lewis, Mero Cristianismo, Ed. Quadrante, 1997, págs. 53/55)
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