Como mencionado em outro lugar, os debates sobre Cipriano foram novamente retomados por alguns leitores católicos que decidiram deixar a discussão do primado de Pedro de lado, para focar na discussão da sucessão apostólica. O assunto é introduzido com uma citação da epístola 75 de Cipriano, que nos diz:
Portanto, já que somente a Igreja possui a água viva, e o poder de batizar e limpar o homem, aquele que diz que qualquer um pode ser batizado e santificado por Novaciano deve primeiro mostrar e ensinar que Novaciano está na Igreja ou preside sobre a Igreja. Pois a Igreja é una, e como ela é una, não pode estar tanto dentro como fora. Pois se ela está com Novaciano, ela não está com Cornélio. Mas se ela está com Cornélio, que sucedeu o bispo Fabiano por ordenação legal, e quem, além da honra do sacerdócio, o Senhor glorificou também com o martírio, Novaciano não está na Igreja; nem pode ser reconhecido como bispo, quem, sucedendo a ninguém, e desprezando a tradição evangélica e apostólica, surgiu por si mesmo. Pois aquele que não foi ordenado na Igreja não pode nem ter nem manter a Igreja de qualquer forma1.
Cipriano fala claramente de sucessão neste trecho, e questiona quem Novaciano teria sucedido como bispo. A sua conclusão é que Novaciano está fora da Igreja e não poderia, portanto, realizar batismos válidos.
Aqui então se traça um paralelo com os protestantes, mais especificamente com os reformadores. Para a Igreja Católica, os reformadores não sucedem ninguém. Eles não foram ordenados de forma válida pela Igreja, e portanto estariam na mesma situação de Novaciano: um falso bispo fora da igreja, reclamando para si o direito de ministrar os sacramentos e a Palavra de Deus.
Obviamente esta argumentação emprega a ideia, não declarada, de que a ordenação que Cipriano tem em vista é a mesma praticada hoje ou no tempo dos reformadores, pela Igreja Católica. Mas será que podemos afirmar isto, ou estamos aqui lidando com um anacronismo por parte de nossos leitores católicos?
Observe que o próprio Cipriano questiona a validade da ordenação de Novaciano, e é em consequência a isto que Cipriano questiona de quem ele é sucessor. Portanto, para estabelecer alguma sucessão válida, é importante primeiro estabelecer a ordenação como válida. O que é uma ordenação válida, para Cipriano? Em sua epístola 67, Cipriano escreve ao povo e o clero da Espanha, a respeito de dois bispos que foram depostos por idolatria. Cipriano foi questionado sobre como proceder na ordenação de novos bispos, e é aqui que encontramos uma resposta para nossa pergunta:
4. O que também nós notamos vir de autoridade divina, que o sacerdote seja escolhido na presença do povo sob os olhos de todos, e deve ser aprovado digno e capaz por julgamento público e testemunho; como no livro de Números o Senhor comanda Moisés, dizendo, “Tome Aarão teu irmão, e Eleazar seu filho, e os coloque no monte, na presença de toda a congregação, e tire suas vestes e as coloque em Eleazar seu filho, e deixe Aarão morrer lá, sendo adicionado a seu povo”. Deus ordena o sacerdote ser apontado na presença de toda a assembleia, ou seja, Ele instrui e mostra que a ordenação de sacerdotes não seve ser celebrada exceto com o conhecimento do povo que está por perto, que na presença do povo ou os crimes do mau sejam revelados ou os méritos do bom sejam declarados, e a ordenação, que deve ser examinada pelo sufrágio e julgamento de todos, possa ser justo e legítimo. E isto é subsequentemente observado, de acordo com a instrução divina, nos Atos dos Apóstolos, quando Pedro fala ao povo da ordenação de um apóstolo no lugar de Judas. “Pedro,” ele diz, “se pôs de pé no meio dos discípulos e a multidão estava em um lugar”. Não só observamos que isto foi considerado pelos apóstolos somente na ordenação de bispos e sacerdotes, mas também de diáconos, cuja própria questão também está escrito em seus Atos “E os doze convocaram”, ele diz, “toda a congregação de discípulos, e disseram”, que foi feito tão diligentemente e cuidadosamente, com a convocação de todo o povo, certamente por esta razão, que nenhuma pessoa indigna possa se arrastar para o ministério do altar, ou para o ofício de um sacerdote. Pois que pessoas indignas são às vezes ordenadas, não segundo a vontade de Deus, mas de acordo com a presunção humana, e que aquelas coisas que não veem de uma ordenação legítima e direita são desagradáveis a Deus, o próprio Deus manifesta pelo profeta Oseias, dizendo, “Eles estabeleceram para si mesmos um rei, mas não por mim.
5. Por tal razão você deve diligentemente observar e manter a prática deixada pela tradição divina e observância apostólica, que também é mantida entre nós, e quase por todas as províncias, que para a celebração apropriada de ordenações, todos os bispos vizinhos da mesma província devem se ajuntar com aquele povo para o qual o prelado é ordenado. E o bispo deve ser escolhido na presença do povo, que mais tem conhecido a vida de cada um e acompanhou os feitos de cada um em respeito a sua conduta habitual. E isto também, nós vemos, foi feito por vocês na ordenação de nosso colega Sabino; assim que, pelo sufrágio de toda a irmandade, e pela sentença dos bispos que se reuniram em sua presença, e que escreveram cartas a vocês sobre seu respeito, o episcopado foi conferido a ele, e as mãos foram impostas sobre ele no lugar de Basílides2.
Cipriano portanto orienta que o novo bispo deva ser eleito por todos os cristãos da cidade através de votação, acompanhados da presença dos bispos da região. Esta é a ordenação válida para Cipriano.
Esta epístola deixa claro que bispos podem ser igualmente depostos pelo povo:
De cujo relato um povo obediente aos preceitos do Senhor, e temendo a Deus, deve se separar de um prelado pecaminoso, e não se associar com os sacrifícios de um sacerdote sacrílego, especialmente desde que eles mesmos possuem o poder ou de escolher sacerdotes dignos ou de rejeitar os indignos3.
Isto esclarece bastante a disputa entre Novaciano e Cornélio pelo episcopado de Roma. Novaciano tentou destituir Cornélio de seu cargo através de falsas acusações. Na epístola 40 de Cipriano, ele menciona como os representantes de Novaciano tentaram acusar Cornélio:
E quando em nossa solene assembleia eles invadiram com invejoso abuso e clamor turbulento, exigindo que as acusações que eles disseram ter trazido e que poderiam provar, fossem publicamente investigadas por nós e pelo povo, nós dissemos que não era consistente com nossa seriedade macular a honra de nosso colega, que já tinha sido escolhido e ordenado e aprovado pela sentença audível de muitos, examinando-o ainda mais por causa da abusiva voz de rivais4.
Cipriano já tinha recebido informações de pessoas confiáveis, de que as acusações contra Cornélio eram falsas. Fossem verdadeiras, Cornélio poderia ter acabado como Basílides e Marital, os bispos depostos na Espanha. Mas nada poderia ser feito contra uma ordenação válida:
A quem nós já demos esta resposta, nem devemos parar de ordená-los a deixar de lado suas divergências e disputas perniciosas, e ficarem cientes que é uma impiedade amaldiçoar sua Mãe; e reconhecer e entender que quando um bispo é uma vez feito aprovado pelo testemunho e julgamento de seus colegas e do povo, nenhum outro pode ser apontado5.
Cipriano é portanto bem consistente em sua definição de ordenação. Há sempre a participação do povo e dos bispos da região.
Agora que conhecemos um pouco do pensamento de Cipriano a respeito, podemos comparar com o ensino católico romano. Iniciamos a comparação, portanto, com um trecho do catecismo católico, que fala sobre como deve ser feita a ordenação:
1559. É em virtude da consagração episcopal e pela comunhão hierárquica com a cabeça e os membros do colégio que alguém é constituído membro do corpo episcopal.O carácter e a natureza colegial da ordem episcopal manifestam-se, entre outros modos, na antiga prática da Igreja que exige, para a consagração dum novo bispo, a participação de vários bispos. Para a ordenação legítima dum bispo requer-se, hoje, uma intervenção especial do bispo de Roma, em virtude da sua qualidade de supremo vínculo visível da comunhão das Igrejas particulares na Igreja una, e de garante da sua liberdade6.
Notemos que o Catecismo fala da participação de vários bispos, algo que Cipriano também defende. No entanto, o Catecismo Católico fala da intervenção do bispo de Roma, o que Cipriano nem de longe menciona. Por outro lado, o Catecismo Católico sequer menciona a participação do povo na escolha do bispo. A Enciclopédia Católica dá grandes detalhes sobre a nomeação de bispos na Igreja Católica:
O concílio de Trento determinou as condições a serem preenchidas por candidatos ao episcopado, das quais as seguintes são as principais: nascimento em matrimônio legal, livre de censura e irregularidade ou qualquer defeito na mente, pureza de morais pessoais e boa reputação. O candidato deve também ter trinta anos completos de idade e não ter menos de que seis anos nas Ordens Sagradas. Ele deve também ter o grau teológico de Doutor ou pelo menos uma licenciatura em teologia ou lei canônica ou então ter o testemunho de uma academia pública ou cátedra de estudos (ou, se ele é religioso, da mais alta autoridade de sua ordem) para que ele possa ensinar outros (c. vii, De electione et electi potestate, X.I. vi; Friedberg, II, 51. Concílio de Trento Sess. XXII, De ref., ch. ii). O Ofício Sagrado é encarregado com o exame das pessoas chamadas ao episcopado, com a exceção dos territórios sujeitos à Congregação de Propaganda ou à Congregação de Assuntos Eclesiásticos Extraordinários, ou naqueles países onde a nomeação de bispos é governada por leis especiais e concordatas ("Motu Proprio" do Papa Pio X. 17 de Dezembro de 1903; "acta sanctae Sedis, 1904, XXXVI, 385). Nós dissemos que os decretos reconhecem o direito dos consistórios de catedrais de eleger o bispo. Este direito foi há muito tempo revogado e não está mais em vigor. Em virtude da segunda regra do Tribunal Papal a escolha dos bispos pertence exclusivamente ao papa (Walter, Fontes juris eccesiastici antiqui et hodierni, Bonn, 1861, 483) Exceções a esta regra. Contudo, são numerosas. Na Áustria (com exceção de algumas sés episcopais), na Bavária, na Espanha, em Portugal e no Peru, o Governo apresenta ao soberano pontífice os candidatos para o episcopado. Isto foi assim também na França e em várias Repúblicas Sul-americanas antes da ruptura ou denúncia das concordatas entre os estados e a Sé Apostólica. Com o encerramento destas concordatas tais estados perderam todos os direitos de intervenção na nomeação de bispos; isto contudo não previne o Governo de várias Repúblicas Sul-americanas de recomendar candidatos ao soberano pontífice. O consistório da catedral é autorizado a eleger o bispo em várias dioceses da Áustria, Suíça, Prússia e em alguns estados da Alemanha, notavelmente na província eclesiástica do Reno Superior. As ações dos eleitores, contudo, não são inteiramente livres. Por exemplo, eles não podem escolher pessoas detestáveis ao Governo (Carta do Cardeal Secretário de Estado aos Consistórios da Alemanha, 20 de Julho de 1900; Contemporâneo Canonista, 1901, XXIV, 727). Em outros lugares o próprio papa nomeia bispos, mas na Itália o Governo insiste que eles obtenham o real exequatur antes de tomar posse da sé episcopal. Em países missionários o papa geralmente permite a “recomendação” de candidatos, mas isto não amarra juridicamente o soberano pontífice, que tem o poder de escolher o novo bispo de pessoas não incluídas na lista de candidatos recomendados. Na Inglaterra os cânones da catedral selecionam por uma maioria de votos, em três sucessivas eleições, três candidatos para a vaga na sé episcopal. Seus nomes, arranjados em ordem alfabética, são transmitidos à Propaganda e ao arcebispo da província, ou ao bispo auxiliar sênior da província, se a questão é a da eleição de um arcebispo. Os bispos da província discutem os méritos dos candidatos e transmitem suas observações à Propaganda. Desde 1847 os bispos são permitidos, se eles desejarem, a propor outros nomes para a escolha da Santa Sé, e a decisão da Propaganda (25 de Abril, 3 de Maio, 1904) confirma esta prática (Instrução de Propaganda, 21 de Abril, 1852; "Collectanea S. C. de Propagandâ Fide", Roma, 1893. no. 42; Taunton, 87-88). Decretos análogos estão em vigor na Irlanda. Os cânones da catedral e todos os párocos livres de censura e em atual e pacífica possessão de sua paróquia ou união de paróquias, escolhe em uma simples eleição três eclesiásticos. Os nomes dos três candidatos que obtiveram o maior número de votos são anunciados e encaminhados para a Propaganda e para o arcebispo da província. O arcebispo e os bispos da província dão à Santa Sé sua opinião sobre os candidatos. Se eles julgarem que nenhum dos candidatos é capaz de preencher as funções episcopais nenhuma segunda recomendação deve ser feita. Se for uma questão de nomeação de um bispo auxiliar com o direito de sucessão as mesmas regras são seguidas, mas a presidência do encontro eleitoral, ao invés de ser dado ao metropolitano, seu delegado, ou ao bispo sênior da província, pertence ao bispo que pede pelo auxiliar (Instrução de Propaganda, 17 de Setembro, 1829, e 25 de Abril, 1835; "Collectanea," nos. 40 e 41). Na Escócia, onde não há consistório de cânones, eles seguem as regras como na Inglaterra; e quando não há consistório, os bispos da Escócia e os arcebispos de Edimburgo e Glasgow escolhem por uma tripla eleição os três candidatos. Os nomes destes últimos são comunicados à Santa Sé juntamente com os votos que cada candidato obteve. Ao mesmo tempo são transmitidas informações úteis sobre cada um de acordo com perguntas determinadas pela Propaganda (Instrução da Propaganda, 25 de Julho, 1883; "Collectanea". no. 45). Nos Estados Unidos da América os consultores diocesanos e reitores irremovíveis da diocese se reúnem sob a presidência do arcebispo ou do bispo sênior da província e escolhem três candidatos, o primeiro dignissimus, o segundo dignior, e o terceiro digmus. Seus nomes são enviados à Propaganda e aos arcebispos da província; o arcebispo e os bispos da província examinam os méritos dos candidatos propostos pelo clero e por sua vez, por uma eleição secreta propõe três candidatos. Se eles escolherem outros candidatos do que aqueles designados pelo clero, eles indicam suas razões para a Propaganda. No caso da nomeação de um auxiliar com o direito de sucessão, a reunião do clero é presidida pelo bispo que requer um auxiliar. Se diz respeito a uma recém-criada diocese, os consultores de todas as dioceses de cujo território a nova diocese foi formada e todos os reitores irremovíveis da nova diocese escolhem três candidatos do clero. Finalmente, se é uma questão de substituir um arcebispo ou dar a ele um auxiliar com direito a sucessão, todos os metropolitanos dos Estados Unidos são consultados pela Propaganda (Decreto da Propaganda, 21 de Janeiro, 1861, modificado por aquele de 31 de Setembro, 1885; Collectanea, no. 43). No Canadá por um decreto de 2 de Dezembro, 1862, a Igreja ainda segue as regras estabelecidas pela Propaganda em 21 de Janeiro, 1861, para os Estados Unidos (Collectanea. no. 43; Collectio Lacensis 1875, III, 684, 688). A cada três anos os bispos devem comunicar à Propaganda e ao metropolitano os nomes dos sacerdotes que eles acham dignos das funções episcopais. Em adição, cada bispo deve designar em uma carta secreta três eclesiásticos que ele acredita serem dignos de sucedê-lo. Quando ocorre uma vaga, todos os bispos da província indicam ao arcebispo ou ao bispo sênior os sacerdotes que eles consideram recomendáveis. Os bispos então discutem em uma reunião os méritos de cada um dos sacerdotes recomendados, e procedem à nomeação dos candidatos por voto secreto. As atas da reunião são transmitidas à Propaganda. Na Austrália, um método similar àquele em uso nos Estados Unidos é seguido. Duas diferenças, contudo, devem ser notadas: primeiro os bispos ainda anunciam a cada três anos, ao metropolitano e à Propaganda os nomes dos sacerdotes que eles consideram dignos do ofício episcopal. Segundo, quando a nomeação de um bispo auxiliar está em questão, a presidência da assembleia dos consultores e reitores irremovíveis pertence não ao bispo que requer o auxiliar, mas ao metropolitano ou bispo delegado por ele (Instrução da Propaganda, 19 de Maio, 1866, modificado pelo decreto de 1 de Maio, 1887; Collectanea, no. 44)7.
Como podemos ver desta extensa descrição, em momento algum o povo participa da eleição do bispo. Geralmente é o papa que escolhe o bispo, sendo que os candidatos são apontados ora por governos, ora por membros do próprio clero. Não é bem esta a ordenação que Cipriano considera como “legítima”, já que a eleição não é feita pelo povo ou pelos bispos (os últimos só poderiam escolher os candidatos). Sendo assim como os católicos poderiam falar de sucessão apostólica segundo Cipriano, quando eles sequer cumprem a ordenação segundo ele?
Um último ponto a ser analisado é a avaliação de um bispo. Vimos na Epístola 67 de Cipriano que dois bispos foram depostos por idolatria. Cipriano ali fala do dever do povo de rejeitar falsos sacerdotes:
3. Nem deixe o povo se bajular por que estão livres do contágio do pecado, enquando comunicam com um sacerdote que é um pecador, e dando seu consentimento ao episcopado injusto e ilegal de seu administrador, quando a reprovação divina através de Oseias o profeta ameaça, e diz, “Seus sacrifícios serão como o pão de pranteadores; todos que o comerem serão imundos”, ensinando manifestamente e mostrando que estão absolutamente ligados ao pecado todos aqueles que foram contaminados pelo sacrifício de um sacerdote profano e injusto. O que, além do mais, nós encontramos manifesto em Números, quando Coré, Datã e Abirão clamaram para si o poder de sacrificar em oposição a Araão o sacerdote. Ali também o Senhor ordenou através de Moisés que o povo deveria ser separado deles, para que não sendo associados com os ímpios, também não fossem eles mesmos ligados intimamente com a mesma impiedade. “Separem-se”, diz Ele, “das tendas destes ímpios e endurecidos homens, e não toquem nas coisas que pertençam a eles, para que não pereçais juntamente em seus pecados”. De cujo relato um povo obediente aos preceitos do Senhor, e temendo a Deus, deve se separar de um prelado pecaminoso, e não se associar com os sacrifícios de um sacerdote sacrílego, especialmente desde que eles mesmos possuem o poder ou de escolher sacerdotes dignos ou de jeitar os indignos8.
O povo portanto tem o dever, segundo Cipriano, de rejeitar os falsos sacerdotes. E isto fica claro em várias passagens de seus escritos, onde o sacerdote é julgado por sua conduta moral. Tal poder de julgamento requer um mínimo de instrução teológica para o povo, para que estes possam julgar de forma correta. E é por este motivo que Cipriano não hesita de compartilhar textos das Escrituras com leigos, para sua instrução:
Cipriano a seu filho Quirino, saudações. De sua fé e devoção que você manifesta no Senhor Deus, amado filho, você me pede para juntar das Escrituras Sagradas para sua instrução algumas passagens importantes sobre o ensino religioso de nossa escola; buscando por um curso sucinto de leitura sagrada, para que sua mente, entregue a Deus, não possa ser esgotada com longos ou numerosos volumes de livros, mas, instruída com um resumo dos preceitos celestiais, possa ter um saudável e largo compêndio para alimentar sua memória. E por que eu te devo uma abundante e amorosa obediência, eu fiz o que você desejava. Eu trabalhei por uma vez, para que você nem sempre trabalhe. Então, tanto quanto minha pequena habilidade pudesse abraçar, eu colecionei certos preceitos do Senhor e ensinos divinos, que possam ser fáceis e úteis para os leitores, no que poucas coisas digeridas em um pouco espaço são lidas rapidamente e são frequentemente repetidas. Eu desejo a você, amado filho, sempre uma despedida de coração9.
Também em sua disputa com Estêvão, Cipriano, que o reconhece como um bispo válido, passa a avaliar o seu ensino através das Escrituras:
Ele proibiu que alguém vindo de qualquer heresia seja batizado na Igreja, ou seja, ele julgou o batismo de todos os hereges ser justo e reto. E apesar de heresias especiais terem batismos especiais e diferentes pecados, ele, mantendo comunhão com o batismo de todos, juntou os pecados de todos e os juntou em seu próprio peito. E ele ordenou que nada deveria ser inventado, a não ser aquilo que tem sido transmitido, como se aquele que mantém a unidade, clamando por uma Igreja um batismo, fosse um inventor, e não manifestamente aquele que, se esquecendo da unidade, adota as mentiras e contágios do lavar profano. Que nada seja inovado, diz ele, nada mantido, exceto aquilo que foi transmitido. De onde é aquela tradição? Ela vem da autoridade do Senhor e do Evangelho, ou ela vem dos comandos e das epístolas dos apóstolos? Pois que aquelas coisas que estão escritas devem ser feitas, Deus testemunha e admoesta, dizendo a Josué o filho de Num: “O livro desta lei não deve se afastar de tua boca; mas tu deves meditar nele dia e noite, para que tu possas observar para fazer de acordo com tudo que está escrito ali”. Também o Senhor, enviando Seus apóstolos, os ordena para que as nações sejam batizadas, e ensinadas a observar todas as coisas que Ele comandou. Se, então, é ou prescrito no Evangelho, ou contido nas epístolas ou Atos dos Apóstolos, para que aqueles que vêm de alguma heresia não devam ser batizados, mas somente as mãos sejam impostas a eles em arrependimento, que esta divina e santa tradição seja observada. Mas se em todo lugar os hereges são chamados nada mais do que adversários e anticristos, se deles se pronuncia que são pessoas a serem evitadas, e serem pervertidas e condenadas por si mesmos, porque é que não deveríamos pensar que eles sejam dignos de ser condenados, já que é evidente do testemunho apostólico que eles são de si mesmos condenados?10
Quando Estêvão tenta ensinar que os batismos de hereges devem ser aceitos como válidos, Cipriano o questiona: “De onde é aquela tradição? Ela vem da autoridade do Senhor e do Evangelho, ou ela vem dos comandos e das epístolas dos apóstolos?”. Na mesma Epístola, Cipriano responde ainda a alegação de que isto se tratava de uma “tradição”:
Nem deve o costume, que se esgueirou entre alguns, prevenir a verdade de prevalecer e conquistar, pois o costume sem verdade é a antiguidade do erro11.
Estamos por fim, prontos para analisar o protestantismo, diante de todos estes dados.
Quando os leitores católicos questionam a ordenação protestante como válida, eles se esquecem que muitos reformadores foram de fato ordenados na Igreja Católica. Então, a princípio, ou eles consideram que a ordenação feita foi inválida (o que nos levaria a perguntar se a ordenação católica é válida), ou a consideram válida, e neste caso eles não deveriam questioná-la. Há por outro lado vários que foram ordenados fora da Igreja Católica, o que analisaremos em breve.
Quando os reformadores começaram a questionar o ensino da Igreja em vários pontos, eles não fizeram nada mais do que Cipriano fez no caso de Estêvão: eles questionaram de onde são estas tradições? Elas vêm da autoridade do Senhor e do Evangelho, ou ela vem dos comandos e das epístolas dos apóstolos? Os reformadores foram excomungados da igreja Católica exatamente por questionar estas tradições. Não teriam estes reformadores o mesmo direito de Cipriano de dizer:
Dá gloria a Deus quem, sendo amigo de hereges e inimigo dos cristãos, acha que os sacerdotes de Deus que suportam a verdade de Cristo e a unidade da Igreja, devem ser excomungados?12
O que excomunga alguém que suporta a verdade de Cristo é, para Cipriano, o inimigo dos cristãos. E o papa, ao excomungar aqueles que defendiam as Escrituras e a verdade de Cristo, se tornou assim.
Por outro lado, agora tratando dos reformadores de uma forma geral, incluindo também os que se ordenaram fora da Igreja Católica, podemos lembrar que na Reforma suíça, o povo foi de fato convocado para disputas teológicas públicas, a fim de definir se a cidade adotaria ou não a Reforma. Tal foi o caso de Genebra, de Zurique, de Lausanne, etc. E a escolha foi feita pelo povo, não por alguns bispos. Nenhum reformador se autoproclamou bispo. E até os dias de hoje, várias igrejas protestantes tradicionais fazem uma eleição para escolher seus pastores. Se há alguma igreja que está mais próxima do que Cipriano reconhecia como ordenação válida, estas são as igrejas protestantes tradicionais.
Tendo a Igreja Católica se autoproclamado inimiga dos cristãos por excomungar aqueles que questionavam a validade de várias tradições com base nas Escrituras (nas palavras de Cipriano), como é que uma pessoa teria uma ordenação válida, se ela fosse buscar esta ordenação justamente na Igreja Católica? O povo exerceu seu direito (segundo Cipriano) ao escolher os reformadores, e nenhum católico poderia portanto questionar a validade de sua ordenação com base nos ensinos de Cipriano. No entanto, a escolha de bispos pelo papa - ou com poder de veto dado a ele - é algo que Cipriano jamais pensou, nem se estivesse delirando.
Notas
1. Cipriano de Cartago, Epístola 75, acessado em http://www.ccel.org/ccel/schaff/anf05.iv.iv.lxxv.html.
2. Cipriano de Cartago, Epístola 67, acessado em http://www.ccel.org/ccel/schaff/anf05.iv.iv.lxvii.html.
3. Ibid.
4. Cipriano de Cartago, Epístola 40, acessado em http://www.ccel.org/ccel/schaff/anf05.iv.iv.xl.html.
5. Ibid.
6. Catecismo Católico, Segunda Secção, Capítulo 3, Artigo 6, acessado em http://www.vatican.va/archive/cathechism_po/index_new/p2s2cap3_1533-1666_po.html
7. Enciclopédia Católica, verbete Bispo, acessado em http://www.newadvent.org/cathen/02581b.htm
8. Cipriano de Cartago, Epístola 67, acessado em http://www.ccel.org/ccel/schaff/anf05.iv.iv.lxvii.html.
9. Cipriano de Cartago, Testemunhos contra os judeus, Livro 3, acessado em http://www.ccel.org/ccel/schaff/anf05.iv.v.xii.iv.i.html
10. Cipriano de Cartago, Epístola 74, parágrafo 2, acessado em http://www.ccel.org/ccel/schaff/anf05.iv.iv.lxxiii.htm
11. Ibid.
12. Ibid.
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