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O conto do bilhete premiado

Escrito por  Hélio
Bilheteria

No meio da balbúrdia que assola a igreja evangélica no Brasil, tenho uma dúvida cruel: o que leva alguém a seguir um falso profeta e acreditar em tudo o que ele diz? Qual é a motivação que está por trás dessa conduta? Obviamente, há muitos fatores que influenciam uma pessoa a entrar num regime de obediência cega a um líder religioso, sem questionar o seu testemunho e a sua pregação.

Chamar os seguidores de "fanáticos" me parece uma generalização inócua, que descamba para o pejorativo quando poderia (ou deveria) ser elucidativo. Banaliza mais do que explica. Proponho, portanto, algumas razões que me parecem cabíveis numa análise mais aprofundada, a título de contribuição para o debate. Esta lista não pretende ser exaustiva, mas exemplificativa de motivos que podem ser ampliados, intercambiados, mesclados e/ou recombinados, numa tentativa de dissecar este fenômeno:

1) instinto religioso - esta é uma questão ainda muito pouco estudada no meio acadêmico. Já existem alguns trabalhos bastante interessantes sobre o instinto moral, área em que Steven Pinker é o maior e melhor referencial (clique aqui para maiores detalhes). O fato, entretanto, é que o ser humano parece ser naturalmente condicionado a crer num poder superior, e mesmo aqueles que observam a questão do ponto de vista ateu, consideram o instinto religioso como um fator agregador da evolução, que deu aos primeiros ajuntamentos humanos um poder de coesão em torno de objetivos ditados por um ente superior através de seus enviados, o que lhes permitiram enfrentar os inimigos e as adversidades naturais de forma muito mais organizada e competente. É curioso verificar que mesmo o ateísmo militante pode ser enquadrado numa espécie instinto (a-)religioso, ainda que de seu objetivo seja negar a divindade. Ainda que a ciência não tenha chegado sequer perto de esclarecer a questão, as pessoas tendem a se comportar de maneira religiosa, e isto as predispõe, de certa forma, a se comportar de maneira submissa diante de uma divindade, o que nos leva ao segundo fator:

2) temor reverencial - em qualquer religião, toda pessoa que se diz intermediária de uma revelação específica e/ou se apresenta como um canal de comunicação com o divino - enfim, um "sacerdote" de um determinado deus -, assume uma posição de autoridade em relação aos seus seguidores, que estão, de certa forma, predispostos a confiar no seu líder e obedecer as suas determinações sem questioná-las a priori. Há, por assim dizer, uma "aura de divindade" na pessoa do sacerdote, que induz os seus fiéis a uma posição de submissão não só em relação ao ente superior do qual derivam sua autoridade, mas sobretudo quanto a si próprios. Em igrejas que se dizem cristãs, falsos profetas sabem manipular essa confusão para atingir os seus objetivos particulares e, muitas vezes, inconfessáveis.

3) o poder do auto-engano - o ser humano parece ter uma séria tendência ao auto-engano. Cada um de nós pode ver isso presente em nossas vidas fazendo um exercício muito simples: basta lembrar de um episódio trágico ou doloroso que aconteceu há muitos anos. Reparou como a lembrança hoje não dói tanto como efetivamente doeu à época dos fatos? Pois é, a nossa memória trata de "dourar a pílula" e ir pouco a pouco amenizando o fato, bem como a encontrar algum lado positivo, por mínimo que seja, no que aconteceu. Da mesma maneira - em diferente grau, é verdade - nos comportamos com relação aos fatos e às relações atuais. Há um misterioso processo de relativização das coisas, tornando tudo um pouco mais palatável e compreensível. Essa questão parece estar diretamente relacionada com o nosso autônomo instinto de sobrevivência. Seria muito difícil encarar a vida como ela é, os fatos como eles são, nus e crus, de maneira seca e hiper-realista. Por isso, quando o falso profeta prega algo herético, que soa mais a uma aberração, seus seguidores tendem a racionalizar o que ele disse e torná-lo, de alguma maneira, mais - digamos - digerível pelo intelecto. O auto-engano é algo tão poderoso que as pessoas fogem até da Bíblia para verificar se o que foi dito é realmente bíblico. Preferem simplesmente se "acostumarem" a elas, nem que para isso precisem repetir verdadeiros mantras evangélicos a si mesmos. Como diz Eduardo Gianetti em seu livro "Auto-Engano", "nada é o que parece: assim como o homem primitivo viveu num mundo de sonho em relação aos fenômenos da natureza, também nós ainda vivemos num mundo de sonho em relação a nós mesmos e pouco ou nada sabemos sobre as causas verdadeiras de nossas ações na vida prática."

4) o comportamento de manada - o auto-engano pode ser - muitas vezes - coletivo. Embora o comportamento de manada seja um fenômeno mais facilmente verificado no mercado financeiro, nas igrejas podemos constatá-lo em muitas situações. Por exemplo, diante de algo absurdo que o líder prega, o auto-engano já opera no indivíduo no sentido de amenizar o que ouviu, e ele busca no grupo uma espécie de "confirmação negativa" do seu comportamento, ou seja, ele não quer - verdadeiramente - que o grupo confirme as suas suspeitas de que está sendo enganado, mas o seu inconsciente lhe pergunta: "será que mais ninguém percebeu a barbaridade que eu acabei de ouvir?". Diante da resposta negativa a essa questão íntima, suas emoções obtêm um alívio temporário e ele se sente - de novo - pertencente a um grupo, sem se dar conta de que muitos outros se fizeram a mesma pergunta, e todos preferiram o conforto ilusório de uma manada que seguirá incondicionalmente o seu líder e todos se atirarão no abismo, se preciso for.

5) a preguiça de pensar; 6) a falta de educação e 7) as carências sócio-econômicas - são 3 fatores que estão intimamente associados. Entenda-se por "educação" aqui a educação convencional, que deveria ser oferecida pelas escolas públicas, nas quais deveria ser (mas não é) formada a imensa maioria da população brasileira. Não é necessária uma detalhada pesquisa estatística para afirmar que existe no ser humano, genericamente considerado, uma tendência ao comodismo e uma aversão à introspecção e ao pensamento crítico. Os fatos falam por si mesmos. São poucos aqueles que se dedicam a questionar a própria existência, o grupo, a sociedade e o mundo em que estão inseridos. Larga parcela da população acha que fazer isso é pura perda de tempo, e os filósofos são pessoas que não têm nada melhor para fazer e têm tempo de sobra para investigar essas coisas. É claro que milhões de pessoas, no Brasil, têm que garantir a sua sobrevivência e a da família e, ainda que quisessem, não encontram tempo nem disposição para uma autocrítica, para a análise da sua situação sócio-econômica, e muito menos para agir visando modificar a situação. Por outro lado, muitas pessoas tiveram acesso a uma educação de qualidade e vivem em boas condições, mas se recusam a pensar, da mesma maneira que há outros que não tiveram nada disso e se tornam grandes pensadores, mas essas são exceções que, a meu ver, apenas confirmam a regra. Infelizmente, sempre há gente ingênua ou incauta, e o que varia é sua representatividade na população. De qualquer maneira, sempre há uma massa ignara pronta a ser manipulada por líderes religiosos inescrupulosos, e essas pessoas querem melhorar o seu nível social, e aí aberrações - como a teologia da prosperidade - caem como uma luva.

8) falta de instrução bíblica - no meio evangélico brasileiro, pode-se notar uma forte ênfase às revelações particulares dadas aos falsos profetas de plantão, em detrimento do ensino sistemático da Palavra. Curiosamente, o livre exame da Bíblia pelo crente foi um dos pilares da Reforma Protestante, já que, até então, este estudo era limitado a um número pequeno de pessoas e de centros de ensino. Atualmente, esta boa prática não é mais incentivada pela Igreja brasileira, que está muito mais próxima da heresia montanista do que da ortodoxia cristã. O montanismo foi um movimento do século II, fundado - como o nome indica - por Montano, cujos adeptos se diziam portadores de revelações particulares do Espírito Santo, às quais a igreja deveria se submeter. A seu favor, em comparação com as "profetadas" atuais, deve-se dizer que o cânon do Novo Testamento não existia - pelo menos como o conhecemos hoje - na época de Montano. Entretanto, os evangelhos e as cartas apostólicas já circulavam entre as igrejas, como uma maneira de uniformização do ensino e da pregação (a chamada "ortodoxia"). Na igreja evangélica brasileira do século XXI, o cânon já está fechado há quase 2 milênios, e mesmo assim sempre aparece alguém com uma revelação nova que pretende impô-la aos seus seguidores. "O meu povo está sendo destruído, porque lhe falta conhecimento", diz o Senhor (Oséias 4:6). E "toda Escritura é divinamente inspirada e proveitosa para ensinar, para repreender, para corrigir, para instruir em justiça" (2 Timóteo 3:16). Os falsos profetas mantêm o povo afastado do estudo bíblico porque sabem que, se conhecerem a verdade, deles se libertarão (João 8:32). Oferecem-lhes como alimento um leite estragado, envenenado pelos seus delírios. "Ora, qualquer que se alimenta de leite é inexperiente na palavra da justiça, pois é criança; mas o alimento sólido é para os adultos, os quais têm, pela prática, as faculdades exercitadas para discernir tanto o bem como o mal" (Hebreus 5:13-14). É claro que muito desta desídia bíblica se explica (mas não se justifica) pelas deficiências culturais e sócio-econômicas, mas há que se destacar, também, a formação nominal como cristão do povo brasileiro, geralmente na Igreja Católica. Há, portanto, uma certa identificação de se pertencer a uma determinada religião, sem entretanto entendê-la ou praticá-la. Este é um fenômeno muito presente nas igrejas protestantes brasileiras, que não sabem de onde vêm, o que são, nem para onde vão, mas analisaremos isso um pouco mais no item seguinte:

9) o desprezo à ortodoxia - o próprio nome - ortodoxia - já gera uma certa confusão (quando não repulsa), por não se compreender o sentido exato do termo, hoje genericamente associado à tradição oriental da Igreja cristã. Por "ortodoxia" deve ser entendido o conjunto de doutrinas comuns a todos os ramos históricos da Igreja cristã, ou seja, os católicos, os ortodoxos orientais e os protestantes, por se tratar de um período em que a Igreja não estava dividida, quando aconteceram os primeiros concílios (Jerusalém, Nicéia, Constantinopla e Calcedônia), em que as bases fundamentais do cristianismo foram estabelecidas. A imensa maioria dos cristãos nominais brasileiros (católicos e evangélicos incluídos) simplesmente desconhece a História da Igreja. Sabem que existem doutrinas como a da Trindade, a da Encarnação, mas desconhecem o porquê de crer nelas. Se já não chegam à Igreja como criaturas pensantes, não é lá que vão aprender a pensar. Conhecer a História da Igreja é essencial para saber qual é a grande tradição ortodoxa comum a todas as confissões cristãs históricas e compará-las com o que estão pregando no culto das 19 horas. Até se pode argumentar que a Reforma Protestante combateu a tradição oral que serve de fundamento para muitas doutrinas católicas, mas mesmo as igrejas ditas "protestantes" mantiveram a fidelidade à ortodoxia, que hoje se deteriora devido às muitas interpretações particulares que extraem - a fórceps - significados totalmente esdrúxulos de textos fora de contexto, apenas para justificar os interesses escusos dos falsos profetas.

10) o bilhete premiado - não se pode esquecer do ser humano individualmente considerado. Muita gente decide seguir falsos profetas porque está obtendo alguma vantagem com isso, seja ela qual for. Tiago (1:14) já dizia que "cada um, porém, é tentado, quando atraído e engodado pela sua própria concupiscência". A palavra grega traduzida por "engodado" - δελεάζω - deleazō - significa também "fisgado". Líderes heréticos se aproveitam desse desejo tipicamente humano de se dar bem, para jogar a sua isca e arregimentar seguidores. Por isso, muita gente, embora não admita, vê a igreja como um negócio, não só para quem a dirige, como também para os seus liderados. Não se trata necessariamente de uma vantagem ilícita ou imoral, mas de algum conforto material ou emocional que advém do simples fato de se frequentar uma determinada igreja. Guardadas as devidas proporções, se assemelha muito com o famoso conto do bilhete premiado, em que um estelionatário se aproveita da cobiça do outro, que se julga esperto, e, fingindo uma ingenuidade bastante conveniente no momento, oferece um bilhete de loteria supostamente premiado porque não tem condições de receber o galardão. O pretenso esperto imediatamente se aproveita da aparente ignorância do coitadinho que tem o bilhete premiado, e o compra por uma quantia bem menor, e quando vai receber o prêmio, vê umas orelhas de burro crescendo instantaneamente na sua cabeça. Tentou se aproveitar da ingenuidade do outro e agora morre de vergonha por ter caído num golpe tão antigo. Assim são muitos crentes em relação aos falsos profetas que seguem. Estes últimos fingem que estão oferecendo um bilhete premiado, que não é necessariamente o céu, mas um paraíso fictício na Terra, de prosperidade e gozo de bens nesta vida, e seus seguidores se fazem de interessados e solícitos em adquirir o passaporte enquanto lhes convém. O risco é terminar sendo barrado no paraíso verdadeiro.

11) o silêncio dos justos - por muito tempo, no Brasil, os cristãos protestantes se calaram diante das aberrações que foram surgindo no seu meio, derivadas de divisões de igreja e falsos profetas oportunistas que começaram a inventar fábulas e revelações particulares para fundarem suas próprias igrejas. Havia um certo "esprit de corps", um corporativismo evangélico, que impedia críticas e denúncias de grupos estranhos ao evangelho, que, entretanto, alegavam pregá-lo. Felizmente, este é um procedimento que vem sendo abandonado, só espero que não seja tarde demais.

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