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Hedonismo e felicidade cristã

Escrito por  R. E. O. White
Hedonismo

HEDONISMO. Do grego hēdonē, “prazer”. O hedonismo consiste em todas aquelas teorias éticas que identificam o alvo moral como a felicidade, o prazer. Os cirenaicos antigos tomavam por certo que a previsão exata dos resultados prazerosos ou dolorosos das ações se constituía em sabedoria; mais tarde, enfatizavam que o prazer imediato era o resultado que sempre devia ser procurado. Os epicureus modificaram esta ideia, e cultivavam uma vida total de prazer, em contraste com os prazeres meramente momentâneos: “o prazer mediante a prudência” que garantia a sutileza, a variedade, a permanência, para satisfazer um ser racional. Nem o hedonismo “puro” nem o “modificado” fornecia orientação verdadeiramente moral.

O “hedonismo psicológico” sustentava que prazer/dor governam todas as escolhas (Bentham); desejar alguma coisa e achá-la prazerosa são inseparáveis (Mill). Certamente, qualquer objeto deve atrair (mover com prazer previsto), antes de ser escolhido; mas o desejo por algum objeto deve anteceder o prazer na sua realização; nem sempre são escolhidos o prazer ou as coisas agradáveis, porque isto não ofereceria base moral alguma.

O “hedonismo egoísta” (Hobbes) sustentava que, visto ser a felicidade geral uma abstração, cada um deve procurar somente a sua própria felicidade; ou que o fato de cada um procurar sua própria felicidade promoveria a felicidade geral. Mas a ideia de o egoísmo, mesmo do tipo mais refinado, sempre produzir o bem geral, contradiz toda a experiência.

O “hedonismo altruísta” (o utilitarismo muito influente) sustenta que cada um deve buscar a máxima felicidade para o maior número de pessoas (Mill), a identificação intelectual com os outros (Sidgwick) ou a simpatia emocional (Hume), fazendo com que a felicidade dos outros seja necessária para a nossa própria. Mas se o prazer for o alvo, por que o prazer dos outros deve negar o nosso próprio? Apelar à justiça e ao altruísmo introduz considerações não-hedonistas. E o prazer é passível de ser assim somado e redistribuído?

De modo geral, o hedonismo é criticado por identificar a felicidade com o prazer; por argumentar que, pelo fato de que aquilo que escolhemos deve atrair, logo, o prazer em si mesmo é o único alvo, o objeto, bem como o acompanhamento da escolha; porque desconsiderando isto, uma pessoa pode procurar muitas coisas (excelência artística, liberdade, fé), permanecendo indiferente aos prazeres que porventura tragam; por desconsiderar a pergunta verdadeiramente moral: com que devo ficar contente, até que grau e a que preço? Além disso, por reduzir a moralidade ao sentimento, omitindo seus aspectos racionais, éticos e sociais; por não fornecer critério algum para distinguir entre os prazeres superiores e inferiores; dignos e indignos, animais e espirituais ou os de uma pessoa e os de outra. Além disso, sendo que o prazer é altamente individualista, a sociedade não tem nenhum centro em comum para sentir o prazer ou a dor. O hedonismo não tem lugar algum para o auto-sacrifício, para a abnegação ou para o dever. Quando a obrigação é dissolvida no desejo, a moralidade desce à expediência, à procura daquilo que é mais confortável. As tentativas para avaliar os alvos do prazer levaram para a “teoria dos valores” (não-hedonista).

Mesmo assim, a vida moral realmente envolve sentimentos. As promessas do “galardão” percorrem todas as Escrituras, e o cristianismo, herdando a ideia de que um Deus amoroso criou o homem com sentimentos, nunca dispensou as considerações hedonistas. Sustenta que a conduta correta acabará finalmente rendendo satisfação ulterior, que o amor sempre promoverá a felicidade para os outros. Dezesseis vezes Jesus pronuncia como “bem-aventuradas” (ou felizes) certas atitudes e qualidades, e descreve a vida sob o domínio divino na linguagem de festas, vinho, pérolas, tesouros e gozo. Paulo, também, espera que os cristãos sejam felizes (Fp 4.4ss; cf. 1 Co 7.40).

Agostinho expunha o “eudemonismo” (Gr. eudaimonia, “felicidade”): sendo que a moralidade é a procura do bem, daquilo que obterá a felicidade, então o que importa é onde os homens o procuram. Não há felicidade na satisfação de cada desejo aleatório, nas coisas temporárias ou nas que valem menos do que a alma, mas somente no sumo bem do homem – Deus. Amar a Deus e desfrutar dEle é a verdadeira felicidade. Ambrósio e Aquino incluem a “felicidade” no propósito final do homem. Butler pensava que a natureza do homem o leva a procurar a maior felicidade possível; é virtuosa a devida preocupação com a felicidade e o esforço razoável para atingi-la. “Merece consideração se os homens têm a liberdade... de tornarem infelizes a si mesmos sem razão, mais do que fazer a mesma coisa com outras pessoas”. Assim, Kant, convicto de que o homem foi feito para exigir a felicidade dentro do seu derradeiro propósito, postulou a Deus e à imortalidade para harmonizar as exigências do dever com a necessidade inescapável da felicidade.

A maioria dos cristãos da atualidade é suficientemente hedonista e espera que a felicidade siga a dedicação, embora traduzam prazer em termos de “bênção” e tomem por certo que o amor de Deus signifique a solicitude divina no sentido de abrigar, confortar e recompensar os bons. Um hedonismo cristão maduro, embora seja dinâmico em visar a felicidade dos outros, nunca faria da sua própria felicidade um alvo, mas apenas um galardão, se Deus assim quiser, por uma vida dedicada ao serviço desinteressado de Cristo; ao passo que na “felicidade” incluiria o bem-estar espiritual total, com a aceitação divina que se sente.



Enciclopédia Histórico-Teológica da Igreja Cristã(WHITE, R. E. O., “Hedonismo”, in Enciclopédia Histórico-Teológica da Igreja Cristã, São Paulo: Vida Nova, 2009, vol. II, pp. 240-242).

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