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Evangelho a todo custo?

Escrito por  Gustavo
Pedro e Simão o mago

Recentemente, a emissora Globo organizou um festival de música evangélica, intitulada de “Promessas”. Obviamente a emissora que amarga baixos índices de audiência está procurando se aproveitar do modismo gospel que está em alta, para retomar sua antiga glória.

No entanto nem todos acham a iniciativa, por mais interesseira que possa parecer, uma iniciativa reprovável. Este festival foi comemorado por muitos evangélicos, onde alguns inclusive comentaram que Deus teria tocado o coração dos dirigentes da Globo1. Muita discussão se seguiu ao evento, onde se travou uma verdadeira guerra sobre a validade ou não da iniciativa global.

E nesta guerra, uma das armas usadas a favor do utilitarismo gospel foi o versículo de Filipenses 1:18, que diz:


(Fp 1:18) Mas que importa? contanto que, de toda maneira, ou por pretexto ou de verdade, Cristo seja anunciado, nisto me regozijo, sim, e me regozijarei;

O que Paulo estava querendo dizer com estas palavras? Os fins então justificam os meios?

Algumas pessoas negando que o versículo 18 dê base a qualquer tipo de utilitarismo, disseram que estas pessoas que pregavam por inveja eram judeus que acusavam Paulo perante as autoridades romanas. Como estes judeus tinham que explicar às autoridades o que Paulo estava ensinando, então eles faziam uma “pregação” a elas. Isto no entanto não parece negar o uso que os defensores do festival “Promessas” fizeram do versículo, mas sim, estabelecê-lo. Pois se pessoas não cristãs falando sobre o que os cristãos ensinam é considerado pregação por Paulo, então por que não poderíamos considerar o mesmo para o festival “Promessas”?

Mas dificilmente este é o caso. Para começar, os judeus não se detinham tanto tempo explicando aquilo que Paulo ensinava. Por exemplo em Atos 24 vemos eles o acusando perante Félix:

(At 24:1) Cinco dias depois o sumo sacerdote Ananias desceu com alguns anciãos e um certo Tertulo, orador, os quais fizeram, perante o governador, queixa contra Paulo.

(At 24:2) Sendo este chamado, Tertulo começou a acusá-lo, dizendo: Visto que por ti gozamos de muita paz e por tua providência são continuamente feitas reformas nesta nação,

(At 24:3) em tudo e em todo lugar reconhecemo-lo com toda a gratidão, ó excelentíssimo Félix.

(At 24:4) Mas, para que não te detenha muito rogo-te que, conforme a tua equidade, nos ouças por um momento.

(At 24:5) Temos achado que este homem é uma peste, e promotor de sedições entre todos os judeus, por todo o mundo, e chefe da seita dos nazarenos;

(At 24:6) o qual tentou profanar o templo; e nós o prendemos, [e conforme a nossa lei o quisemos julgar.

(At 24:7) Mas sobrevindo o comandante Lísias no-lo tirou dentre as mãos com grande violência, mandando aos acusadores que viessem a ti.]

(At 24:8) e tu mesmo, examinando-o, poderás certificar-te de tudo aquilo de que nós o acusamos.

(At 24:9) Os judeus também concordam na acusação, afirmando que estas coisas eram assim.

Vemos que acima os judeus o acusavam de profanar o templo e ser chefe da seita dos nazarenos. O nome de Jesus sequer foi mencionado acima. Embora em outras ocasiões os judeus pudessem até mencionar e explicar a crença em Jesus, por este exemplo podemos ver que isto não era necessário.

Quem são estas pessoas então? Uma análise do contexto nos dará algumas evidências sobre eles.

Paulo começa sua carta elogiando os filipenses por seu empenho em proclamar o evangelho (Fp 1:5). E antes que alguém possa dizer que as prisões de Paulo o impedem de pregar, ele demonstra como mesmo sua prisão tem contribuído para que ele pregue o evangelho para toda a guarda pretoriana e demais romanos (Fp 1:13).

Será que o fato de Paulo ser preso foi motivo para que os cristãos daquela época deixassem de pregar, por algum medo de ser preso? Nada disto: Paulo fala que muitos irmãos, animados com sua prisão, também saíram a pregar ousadamente (Fp 1:14).

É interessante aqui como Paulo fala de “muitos” irmãos, pois no próximo versículo, quando Paulo passa a comentar daqueles que pregam Cristo por inveja e contenta, ele fala que estes são “alguns”. Há talvez uma tendência de se entender isto como significando “alguns homens”, mas o contexto está tratando de irmãos que estão pregando o evangelho, então o mais natural seria entender que, assim como alguns irmãos pregam de boa vontade o evangelho, outros pregam por inveja e contenda. Paulo então está falando de irmãos!

Há mais um detalhe que reforça este entendimento. Paulo está dizendo que eles pregam a Cristo. Neste versículo, Paulo atribui o mesmo verbo a ambos os grupos. Todos eles estão fazendo a mesma coisa, mas por motivos diferentes: estão anunciando Cristo. E no versículo 18 que estamos analisando, Paulo diz que o fato de Cristo ser anunciado o deixa feliz. Uma pregação errada (é a tendência de uma acusação caluniosa) por parte de não-cristãos não deveria causar esta alegria no apóstolo.

Pode-se então perguntar: que irmãos são estes que pregam por inveja e contenda? No versículo 17 Paulo diz que o objetivo destes irmãos é suscitar aflição às prisões dele, indicando que eles possuem inveja e contenda com relação a ele. De fato, em outros lugares, Paulo fala de alguns que questionam seu apostolado:

(1Co 9:1) Não sou eu livre? Não sou apóstolo? Não vi eu a Jesus nosso Senhor? Não sois vós obra minha no Senhor?

(1Co 9:2) Se eu não sou apóstolo para os outros, ao menos para vós o sou; porque vós sois o selo do meu apostolado no Senhor.

(1Co 9:3) Esta é a minha defesa para com os que me acusam.

É bem provável então que aqueles que questionaram o apostolado de Paulo sejam os mesmos que ele se refere ao dizer que “há alguns que pregam por inveja”. E é interessante observar que uma das contendas que Paulo tenta resolver, e que envolve seu nome, é a contenda que dividia a mesma igreja de Corinto em facções (1Co 1:12). É a mesma igreja onde vemos os questionamentos sobre seu apostolado.

Sendo assim, fica mais fácil entender por que aqueles irmãos pregavam por “inveja”. Pois eles provavelmente tinham inveja de Paulo por seu trabalho bem-sucedido de pregação entre os gentios. Assim, aproveitando-se do fato de Paulo estar preso, eles provavelmente se empenharam mais em pregar para fazer mais adeptos e conseguir maior influência entre os irmãos. A glória dos homens era o lucro alvejado por aqueles irmãos. Possivelmente por isto que Paulo no mesmo capítulo se dedica a mostrar aos Filipenses qual é o seu lucro. E talvez por eles pensarem assim é que Paulo inicia sua epístola dizendo aos filipenses que até mesmo em prisão ele tem pregado o evangelho.

Paulo diz então neste versículo que não importa, pois se Cristo for pregado “de toda maneira”, ele ficará contente. O que significa este “de toda maneira”? Estaria ele se referindo à forma como a pregação é feita, se por música, discurso ou teatro talvez? A próxima cláusula explica a expressão de toda maneira: “ou por pretexto ou de verdade”. Paulo então está falando sobre intenções, não sobre modos de pregação.

Então, o caso do festival “Promessas” poderia ser uma aplicação do versículo de Filipenses 1:18? De forma alguma. Em primeiro lugar, o versículo fala de cristãos anunciando Cristo. Eles possuem intenções erradas, mas são cristãos, não um grupo secular que não possui a menor intenção de se tornar cristão. Em segundo lugar, Paulo está se regozijando pelo anúncio de Cristo, pela pregação do evangelho, não por que pessoas estão cantando hinos cristãos ou estão ensinando estes hinos para as pessoas de seu tempo.

Pode-se pensar que, por Paulo admitir que Cristo poderia ser anunciado por qualquer intenção, poderíamos também admitir que o evangelho seja pregado por ganância, desde que seja levado a todo o mundo. Mas a ganância de longe é o defeito humano que mais prejudicou o cristianismo. Já no capítulo de 8 de Atos temos um exemplo que seria lembrado por toda história do cristianismo:

(At 8:18) Quando Simão viu que pela imposição das mãos dos apóstolos se dava o Espírito Santo, ofereceu-lhes dinheiro,

(At 8:19) dizendo: Dai-me também a mim esse poder, para que aquele sobre quem eu impuser as mãos, receba o Espírito Santo.

(At 8:20) Mas disse-lhe Pedro: Vá tua prata contigo à perdição, pois cuidaste adquirir com dinheiro o dom de Deus.

(At 8:21) Tu não tens parte nem sorte neste ministério, porque o teu coração não é reto diante de Deus.

(At 8:22) Arrepende-te, pois, dessa tua maldade, e roga ao Senhor para que porventura te seja perdoado o pensamento do teu coração;

(At 8:23) pois vejo que estás em fel de amargura, e em laços de iniquidade.

(At 8:24) Respondendo, porém, Simão, disse: Rogai vós por mim ao Senhor, para que nada do que haveis dito venha sobre mim.

Simão, o mago, foi o primeiro a querer usar o dinheiro para comprar os servos de Deus, de forma que eles fizessem aquilo que ele desejava. E é por este motivo que a prática de usar o dinheiro desta forma foi conhecida na história da igreja como simonia. Este mal foi uma das principais causas do declínio moral da igreja na Idade Média, e foi o principal ponto atacado por reformadores morais daquela época, como nos conta Justo González:

Quando terminamos o volume anterior um pequeno grupo de peregrinos marchava para Roma. Liderava-o o bispo Bruno de Tula, a quem o imperador tinha oferecido o papado. Bruno tinha se negado a aceitá-lo das mãos do imperador, e tinha insistido em ir a Roma como peregrino. Se lá o povo e o clero o elegessem bispo, então ele aceitaria a tiara papal. Esta atitude de Bruno refletia uma das principais preocupações dos que queriam reformar a igreja. Para estas pessoas, um dos piores males de que a igreja padecia era a simonia, ou seja, a compra e venda de cargos eclesiásticos. Somente a nomeação por autoridades civis, mesmo sem envolver qualquer transação monetária, parecia a Bruno e a seus acompanhantes estar muito próximo da simonia. Um papado reformador deveria surgir puro já da raiz. Como o monge Hildebrando tinha dito a Bruno, aceitar o papado das mãos do imperador seria ir para Roma, “não como um apóstolo, mas como apóstata”2.

Ao permitir que o dinheiro falasse mais alto, a igreja permitiu que pessoas não comprometidas com o evangelho entrassem para a igreja, mantendo sua conduta imoral e manchando o nome de Deus. Por este exemplo histórico podemos ver que a relação entre grupos seculares movidos pela ganância e a igreja nunca foi benéfica para o cristianismo. E se o cristianismo pode existir e se propagar muito bem sem estas pessoas, por que nos envolvermos com elas?

Notas

2. GONZÁLEZ, Justo L., Uma história ilustrada do Cristianismo, A era dos altos ideais, Volume 4, página 17, Edições Vida Nova.

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