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A realização de nossas aspirações

Escrito por  John Stott
Sonhar com aspiração e fé

O presente capítulo do livro "Por que sou cristão", de John Stott fala de algo muito atual e que penso ser muito importante ser discutido em nossos dias: como a crença em Deus consegue complementar o nosso ser. Eu tentei pegar parte deste texto, mas simplesmente não poderia, já que todo ele é muito interessante.

A sexta razão por que sou cristão pode ser declarada de um modo bem simples: todos os seres humanos possuem vários anseios ou aspirações, os quais só Jesus Cristo pode satisfazer. Isso não é apenas uma teoria; é uma afirmação validada por milhões de cristãos, entre os quais eu espero que eu esteja incluído. Há uma fome no coração humano que ninguém senão Cristo pode satisfazer. Há uma sede que ninguém senão ele pode saciar. Há um vazio interior que ninguém senão ele pode preencher. Como Agostinho escreveu bem no início de suas Confissões "nos fizeste para ti, e nosso coração está inquieto enquanto não encontrar em ti descanso"1.

Mas, à medida que investigamos essa afirmação, geralmente surgem duas objeções imediatas. A primeira é que Jesus Cristo é evidentemente uma muleta. "Ele serve" - as pessoas dizem - "para cães mancos que precisam de ajuda; mas para pessoas sadias, determinadas, que podem tocar a vida por si mesmas, ele é inteiramente supérfluo".

Começo a minha resposta concordando com a crítica. Jesus Cristo é de fato uma muleta para o aleijado, para ajudar-nos a caminhar aprumados, assim como ele é também remédio para os doentes espiritualmente, pão para os famintos e água para os sedentos. Não negamos essa afirmação; ela é perfeitamente verdadeira. Mas, então, todos os seres humanos são aleijados, doentes, famintos e sedentos. A única diferença entre nós não é que alguns são necessitados e outros, não; é que na verdade alguns reconhecem a sua necessidade, enquanto outros não, por causa do orgulho.

A segunda objeção que às vezes se levanta é que Jesus Cristo é uma ficção de nossa própria mente. Algumas pessoas afirmam: "a crença de que Jesus Cristo supre as nossas necessidades humanas expõe a crua realidade. Ele não é senão fruto de nossa imaginação. Você se sente tão amado e desprezado e, então, cria sua própria figura de pai celestial. Você se sente espiritualmente faminto e então inventa Jesus Cristo como o pão da vida".

Minha resposta a essa objeção é que o argumento carece de lógica. O fato de que o alimento satisfaz nossa fome física nos faz desconfiar da comida? O fato de que o amor nos dá um sentimento de bem-estar desperta nossa suspeita acerca do amor? Então por que deveria o fato de que Cristo supre nossas aspirações humanas levantar suspeitas acerca de Cristo? Não, a correspondência entre nossas aspirações e a sua realização em Cristo deve-se não à fantasia em nossa própria mente, mas a uma realidade que Deus estabeleceu. C. S. Lewis faz uma observação sobre isso com sua costumeira clareza: "Nossa nostalgia vitalícia, nosso anseio por estarmos reunidos com algo no universo do qual nos sentimos agora desconectados, nosso desejo de estar do lado de dentro de uma porta que sempre vimos do lado de fora - tudo isso não é mera imaginação neurótica, mas o mais verdadeiro indicador de nossa real situação"2.

Tendo considerado as duas objeções mais comuns que as pessoas levantam à nossa afirmação de que Cristo supre nossas aspirações humanas, estamos prontos para olhar mais profundamente para a afirmação em si. Isso nos leva ao segundo capítulo da carta de Paulo aos Colossenses: "Pois em Cristo habita corporalmente toda a plenitude da divindade, e, por estarem nele [em Cristo], que é o Cabeça de todo poder e autoridade, vocês receberam a plenitude" (vv. 9,10).

Algo comum entre essas duas declarações impressionantes (a primeira acerca de Cristo e a segunda acerca de nós) é a palavra "plenitude" e a expressão "em Cristo". Em Cristo a plenitude de Deus habita permanentemente, e em Cristo (unidos a ele) nós experimentamos plenitude de vida. Todas as coisas essenciais ao ser divino estão em Cristo, e todas as coisas essenciais a nós, seres humanos, estão em nós se estivermos em Cristo. Portanto, ser cristão não é ser uma pessoa extravagante, condenada à excentricidade perpétua; é, ao contrário, ser verdadeira e plenamente humano, experimentar a "plenitude". Assim, em contrapartida, rejeitar a Cristo é tornar-se de algum modo subumano, é desprezar as experiências indispensáveis à autêntica humanidade.

Então, quais são essas experiências, esses anseios humanos? Minha tese é que os seres humanos possuem três aspirações básicas que só Jesus Cristo pode satisfazer.

1. A busca por transcendência

Até pouco tempo atrás, a palavra "transcendência" era considerada pedante, pouco utilizada e pouco compreendida, restrita a instituições de ensino teológico, que faziam distinção entre transcendência ("Deus acima de nós") e imanência ("Deus conosco e entre nós"). Na atualidade, porém, particularmente por causa do entusiasmo pela meditação transcendental, todo mundo tem alguma idéia do que seja transcendência. A busca por transcendência é a busca por uma Realidade que esteja acima da ordem material. Ela surge da convicção de que essa Realidade não pode estar confinada a um teste laboratorial, espalhada sobre uma lâmina e sujeita a um exame microscópico. Há algo mais, algo além, algo tremendo que nenhum instrumento científico é capaz de apreender ou medir.

Um autor que tem dado eloqüente expressão a essa perda contemporânea da transcendência é Theodore Roszak, cujas declarações são ainda mais contundentes pelo fato de ele não ser um cristão professo. Seu livro mais conhecido, posterior a The Making of a Counter Culture (A construção de uma contracultura), publicado em 1968, é provavelmente Where the Wasteland Ends (Onde termina a terra devastada), publicado em 1972, que tem o subtítulo intrigante de "Política e Transcendência em uma Sociedade Pós-Industrial"3. Ele lamenta o que chama de "coca-colonização do mundo". Sofremos hoje - ele diz - de uma "claustrofobia psíquica dentro da visão de mundo científica"4, na qual o espírito humano não pode respirar. Roszak segue castigando a ciência (penso que ele queira dizer pseudociência) por sua violência reducionista com relação à vida humana e sua arrogante afirmação de que é capaz de explicar todas as coisas. Ele fala de seu "espírito desmoralizador"5 e de sua "desconstrução de mistérios"6. O mundo materialista da ciência objetiva não é nem de longe "espaçoso o suficiente para o espírito humano"7. Sem transcendência "a pessoa murcha"8.

Quer Roszak tenha percebido, quer não, ele estava concordando com Jesus, que, citando Deuteronômio, disse que os seres humanos não "vivem só de pão" (Dt 8.3; Mt 4.4). Em outras palavras, somos mais do que corpos materiais carentes de comida; somos seres espirituais carentes de Deus, carentes de transcedência.

Poderíamos citar vários outros exemplos dessa desilusão com o secularismo e dessa perda de transcendência. O renomado sociólogo Peter Berger levantou a "simples hipótese" de que a atual onde em torno do oculto "deve ser compreendida como resultado da repressão da transcendência na consciência moderna"9. Richard North, correspondente de meio ambiente do jornal The Independent, confessa que "uma grande maioria entre nós simplesmente precisa adorar algo... estamos nos apaixonando pelo meio ambiente como uma extensão de, e ao invés de nos termos apaixonado por Deus"10. Ainda mais surpreendente é A. N. Wilson. Embora ele afirme que agora tem "descartado qualquer lealdade religiosa formal", que ele despreza como sendo "aquela moribunda combinação de superstição e engano", ele reconhece que ainda tem "fortes impulsos religiosos dentro de si" e que experimenta "sentimentos de humilhação inominada diante dos mistérios das coisas"11.

Porém mais contundente do que essas confissões individuais é a derrocada do marxismo. Trevor Beeson escreveu que "as doutrinas básicas do comunismo não convenceram as mentes, nem satisfizeram as emoções da intelligentsia ou do proletariado"12. Aquilo que Solzhenitsyn chamou de "trator comunista"13 foi incapaz de esmagar o espírito humano e a sua busca por transcendência.

Assim, onde quer que a transcendência tenha se perdido, as pessoas anseiam por reencontrá-la. Elas buscam-na por meio de drogas que expandem a mente e da chamada "consciência elevada", das fantasias especulativas da ficção científica, da música e de outras formas de arte, do sexo (que Malcom Muggeridge costumava chamar de "misticismo do materialista"), da ioga e de outras expressões da religião oriental.

A mais extraordinária de todas as tendências religiosas recentes talvez seja o surgimento do movimento Nova Era no Ocidente. Trata-se da mistura bizarra de diversas crenças, incluindo religião e ciência, física e metafísica, panteísmo antigo e otimismo evolucionista, astrologia, espiritismo, reencarnação, ecologia e medicina alternativa. David Spangler, um dos líderes do movimento, é o autor de Emergence: The Rebirth of the Sacred (Emergência: o renascimento do sagrado)14. Ele escreve que "desde muito tempo antes" esteve "consciente de uma dimensão extra" do mundo ao seu redor, a qual, quando amadureceu, veio a identificar como "uma dimensão sagrada ou transcendental". Ele afirma que o "renascimento do senso do sagrado é o cerne da Nova Era"15.

Nossa reação cristã ao fenômeno Nova Era, bem como a todas as outras expressões de busca pela transcendência, deveria (é o que me parece) ser de compreensão. Quando o apóstolo Paulo esteve diante dos filósofos de Atenas e respondeu à extrema religiosidade dos cidadãos atenienses, ele os descreveu como pessoas que buscavam a Deus (At 17.27), tateando na escuridão por seu Criador.

Além disso, os cristãos crêem que essa é uma aspiração humana fundamental, que só Jesus Cristo pode satisfazer, pois, embora o pecado nos aliene de Deus, Cristo morreu por nossos pecados a fim de nos reconciliar com Deus (1Pe 3.18). E, uma vez reconciliados com Deus por meio de Jesus Cristo, tudo muda. Caminhamos a cada dia com Deus e vivemos em sua presença. Torna-se natural escutar a sua voz quando ele fala conosco por meio das Escrituras, e torna-se igualmente natural falar com ele em oração. Cultivar um relacionamento pessoal com Deus é básico para o nosso discipulado cristão. Deus torna-se a grande realidade em nossa vida.

Então, no Dia do Senhor (como o domingo é chamado no Novo Testamento), nos prostramos junto diante dele, num misto de encantamento, amor, surpresa e alegria, que chamamos de adoração. Assim como vamos nos encontrar com ele, ele vem se encontrar conosco, em cumprimento à promessa de Jesus de que sempre que dois ou três se reunissem em seu nome ele estaria entre eles (Mt 18.20). Ele se faz conhecido também por meio de sua Palavra (quando ela é lida e exposta) e por meio de sua Santa Ceia (o pão e o vinho, que representam visivelmente a promessa do seu perdão). Na verdade, a adoração cristã pública é o ponto máximo da experiência cristã - nem sempre, é claro. Às vezes os cultos na igreja são um ritual sem realidade. Mas Jesus condenou esse tipo de formalismo. Citando o profeta Isaías (29.13), ele disse: "Este povo me honra com os lábios, mas o seu coração está longe de mim" (Mc 7.6). Porém, quando a adoração é real, nosso coração e nossa mente são transportados para além do tempo e do espaço, e nos juntamos a toda a igreja na terra e no céu em adoração a Deus. Então entendemos o que Jacó quis dizer quando declarou: "Certamente o Senhor está neste lugar"; e, quem sabe, não-cristãos quando entrarem na comunidade, se prostrarão em adoração conosco, dizendo: "Deus está realmente entre vocês!" (Gn 28.16; 1Co 14.24,25).

Para mim é uma grande tragédia que muitos homens e mulheres modernos, na busca por transcendência, se voltem para as drogas, para o sexo, para a ioga, para as seitas e para a Nova Era, em vez de voltarem-se para Cristo e para a sua igreja, onde se deveria experimentar cultos de adoração verdadeiramente transcendentes e desfrutar de um encontro íntimo com o Deus vivo.

2. Busca por significado

Há muita coisa na sociedade contemporânea que não apenas sufoca o nosso senso de transcendência, como também diminui (e até mesmo destrói) nosso senso de valor pessoal, nossa crença de que a vida tem algum significado. Podemos mencionar três tendências.

Primeiro, há o efeito da tecnologia. A tecnologia pode ser libertadora, é claro, pois liberta as pessoas do trabalho pesado industrial ou doméstico. Mas ela pode também ser terrivelmente desumanizadora, fazendo com que homens e mulheres já não se sintam mais pessoas, mas coisas, "identificados não por um nome próprio, mas por um número serial impresso em um cartão (ou, como poderíamos dizer, convertidos em um código de barras), projetado para viajar pelas entranhas de um computador16.

Segundo, há o efeito do reducionismo científico. Alguns cientistas das mais variadas disciplinas têm argumentado que um ser humano não é nada mais do que um animal (o "macaco nu" de Desmond Morris, para ser preciso), ou nada senão uma máquina, programada para dar respostas automáticas a estímulos externos. Foram declarações como essas que instigaram o falecido professor Donald Mackay a popularizar a expressão "adega vazia", para explicar o significado da palavra "reducionismo", e a protestar contra toda tendência de reduzir o ser humano a um nível inferior ao plenamente pessoal.

Com certeza, nosso cérebro é uma máquina, um mecanismo altamente complexo. E nossa anatomia e fisiologia são as mesmas de um animal. Mas essa não corresponde a uma descrição completa de nossa humanidade. Somos mais do que um corpo e um cérebro. Quando as pessoas afirmam que não somos "nada mais" que isto ou aquilo, cometem um erro sério e perigoso.

Terceiro, temos o efeito do existencialismo, de diminuir o senso de valor das pessoas. Pode-se dizer que os existencialistas radicais se distinguem dos humanistas em geral por sua decisão de levar o ateísmo a sério e encarar suas terríveis conseqüências. Como vimos no capítulo 4, pelo fato de (no ponto de vista dos existencialistas) Deus estar morto, tudo o mais morreu com ele. Uma vez que não há Deus, não há valores ou ideais, leis ou padrões morais, propósitos ou significados. E, embora eu exista, não há nada que dê a mim ou à minha existência algum significado, exceto talvez a minha decisão de buscar a coragem para ser. Somente posso encontrar o significado desprezando a minha própria ausência de significado. Não há outra maneira de autenticar a mim mesmo.

Por mais friamente heróica que essa filosofia possa parecer, deve haver algumas poucas pessoas capazes de realizar o truque mágico de fingir ter significância quando sabem que não têm nenhuma. Significância é fundamental para a sobrevivência.

Foi isso que Viktor Frankl descobriu quando, ainda jovem, passou três anos no campo de concentração de Auschwitz. Ele notou que os prisioneiros que mais sobreviviam ao sofrimento eram aqueles "que sabiam que havia uma tarefa esperando por eles para ser realizada"17. Ele cita a declaração de Nietzsche de que "aquele que tem um porquê para viver pode suportar quase todos os cosmos"18.

Mais tarde, Frankl tornou-se professor de psiquiatria e neurologia na Universidade de Viena e fundou a chamada Terceira Escola de Psiquiatria Vienense. Ele postulava que, além da "vontade de prazer" de Freud e da "vontade de potência" de Adler, os seres humanos têm uma "vontade de significado"19. De fato, "a luta por encontrar um significado na vida é a força motivacional primária do homem"20.

Assim, ele desenvolveu o que chamou de "logoterapia", usando logos não como "palavra" nem "razão", mas como "significado". "A neurose de massa do tempo presente" - ele escreveu - é "o vácuo existencial"21, ou seja, a perda do senso de que a vida tem sentido. Às vezes ele perguntava a seus pacientes: "Por que você não comete suicídio?" - uma extraordinária pergunta para ser feita por um médico! Eles respondiam que havia algo (talvez o trabalho, o casamento ou a família) que fazia com que a vida valesse a pena. Então o professor Frankl fazia suas reflexões sobre isso.

A falta de sentido leva ao tédio, ao alcoolismo, à delinqüência juvenil e ao suicídio. Comentando sobre a obra de Viktor Frankl, Arthur Koestler escreveu:

É uma tendência inerente ao homem buscar significado para cumprir e valores para tornar reais... Milhares e milhares de jovens estudantes são expostos a uma doutrinação... que nega a existência de valores. O resultado é um fenômeno mundial - mais e mais pacientes estão lotando nossas clínicas com a reclamação de um vazio interior, um senso de total e extrema falta de significado na vida.22

De acordo com Emile Durkheim, em seu clássico estudo sobre o suicídio, a maior parte dos suicídios é causada pela anomia, que poderia ser definida como "ausência de normas" ou "ausência de significado". O suicídio "anômico" ocorre quando a pessoa não tem um alvo na vida ou persegue um alvo inalcançável, seja poder, sucesso ou prestígio. "Nenhum ser humano pode ser feliz o sequer existir, a menos que suas necessidades sejam suficientemente proporcionais aos seus meios"23.

Agora eu me aventuro a afirmar que Jesus Cristo pode preencher essa segunda aspiração humana básica. Ele nos dá um senso de valor pessoal, porque nos diz quem somos. Para começar, ele tomou do Antigo Testamento esta grande afirmação que já consideramos:

Criou Deus o homem

à sua imagem,

à imagem de Deus o criou;

homem e mulher

os criou.

(Gn 1.27)

Isso significa que, como vimos no capítulo 4, o Criador nos capacitou com um conjunto de faculdades racionais, morais e espirituais que nos tornam como Deus e distintos dos animais. Os seres humanos são seres à imagem de Deus, e a imagem divina em nós, embora maculada, não foi destruída. Portanto, Jesus falou de nosso valor. Ele disse que temos muito mais valor do que uma ovelha (Mt 12.12) ou muitos pardais (Mt 10.31; Lc 12.24).

Jesus não somente ensinou isso; ele o mostrou. Toda a sua missão demonstrou o valor que ele dava às pessoas. Ele tratou a todos - mulheres e homens, crianças e adultos, pecadores e justos - com respeito. Ele foi o bom pastor, que perdeu somente uma ovelha e arriscou-se até a morte para encontrá-la. Assim, ele foi para a cruz, deliberada e voluntariamente, para dar a sua vida por suas ovelhas. Nada pode nos convencer de nosso valor pessoal como a cruz de Cristo. Conforme o arcebispo William Temple declara, "o meu valor é o que eu represento para Deus, e isso é maravilhoso, pois Cristo morreu por mim"24.

O ensino de Cristo sobre a dignidade e o valor do ser humano é muito importante hoje, não somente para nossa própria auto-imagem e auto-respeito, mas também para o bem estar da sociedade. Quando as pessoas são desvalorizadas, tudo na sociedade tende a estragar. Não há nenhuma liberdade, nenhuma dignidade, nenhuma alegria. A vida humana parece não valer a pena ser vivida, porque já não é humana. Mas quando os seres humanos são valorizados como pessoas, pelo seu valor intrínseco, tudo muda. Por quê? Porque as pessoas têm importância. Porque cada homem, mulher e criança tem valor e significado como ser humano feito à imagem e semelhança de Deus.

3. Busca por comunidade

A sociedade tecnocrata, que diminui e até mesmo destrói a transcendência e o significado, destrói também a comunidade humana. A nossa era é de desintegração social, especialmente no Ocidente. As pessoas têm notado que é cada vez mais difícil relacionar-se umas com as outras ou encontrar amor num mundo sem amor. Escolhi três pessoas muito diferentes como testemunhas desta realidade.

Parece apropriado começar com Bertrand Russel, uma vez que sua rejeição ao cristianismo foi o estímulo inicial para este livro. No prólogo de sua autobiografia ele escreveu com uma franqueza tocante:

Três paixões, simples, porém avassaladora, têm governado a minha vida: o anseio por amor, a busca por conhecimento e a insustentável piedade pelo sofrimento da humanidade. Essas paixões, como grandes ventos, têm me varrido de um lado para o outro, num trajeto obstinado, sobre um profundo oceano de angústia, chegando às raias do desespero. Tenho buscado o amor, primeiro, porque ele me traz êxtase... e, depois, porque alivia a solidão - aquela solidão terrível, em que uma consciência trêmula olha por sobre a curvatura do mundo para o imensurável abismo frio e sem vida...25

Minha segunda testemunha é Madre Teresa. Nascida na Iugoslávia de pais albaneses, ela partiu para a Índia quando tinha apenas 17 anos. Em 1948, depois de aproximadamente vinte anos de ensino, ela abandonou a profissão a fim de servir aos mais pobres dos pobres em Calcutá e tornou-se cidadã indiana. Assim, a Índia foi seu lar por mais de sessenta anos, e sua voz e visão foram a voz e a visão do Terceiro Mundo. Eis o que ela escreveu sobre o Ocidente:

As pessoas hoje estão famintas por amor, amor que compreenda, que é... a única resposta à solidão e à grande pobreza. É por isso que nós [irmãos e irmãs da ordem a que pertencia] estamos aptos a ir para países como a Inglaterra, os Estados Unidos e a Austrália, onde não há fome de pão. Mas nesses países as pessoas estão sofrendo de terrível solidão, terrível desespero, terrível ódio, sentindo-se desprezadas, desamparadas, sem esperança. Elas esqueceram como sorrir, esqueceram a beleza do toque humano. Elas estão esquecendo o que é o amor humano...26

Quando li pela primeira vez essa avaliação do mundo ocidental, fiquei um pouco indignado e a considerei meio exagerada. Mas, desde então, tenho mudado de opinião. Penso que ela é acurada, ao menos como uma generalização.

Woody Allen é a minha terceira testemunha. Em toda a sua aclamada carreira como autor, diretor e ator, ele parece nunca ter encontrado a si mesmo ou a qualquer outra pessoa. Em seu filme Manhattan (1979), ele graceja que acha que as pessoas deveriam "praticar sexo para procriar, como os pombos ou os católicos", mas parece incapaz de seguir sua própria receita. Ele confessa que todos os seus filmes "lidam com a maior de todas as dificuldades - relacionamentos de amor. Todo mundo encontra essa dificuldade. As pessoas estão ou apaixonadas, ou a ponto de se apaixonar, ou saindo de uma paixão, ou procurando um amor ou um meio de evitá-lo"27. O biógrafo de Allen termina o retrato dele com estas palavras: "Ele está lutando, como nós certamente estamos lutando, a fim de encontrar a força para construir uma vida sobre um amor. Como a personagem diz em Hannah e suas Irmãs, ‘talvez os poetas estejam certos. Talvez o amor seja a única resposta..."28

Aqui estão três pessoas de histórias, convicções, temperamentos e experiências muito diferentes, que, contudo, concordam sobre a importância vital do amor. Elas falam pela raça humana. Nós também sabemos instintivamente que o amor é indispensável para a nossa humanidade. O amor é a razão de ser da nossa vida.

Assim, as pessoas estão procurando o amor em toda parte. Pelo menos desde os anos 60, alguns têm rompido com o individualismo ocidental e experimentado estilos de vida comunitários. Outros têm tentado substituir a família nuclear (típica do Ocidente) pela família ampliada (tradicional por séculos na Ásia e na África). Outros, ainda, têm repudiado as antigas instituições do casamento e da família numa tentativa (vã e tola, acreditam os cristãos) de encontrar a liberdade e a espontaneidade do amor. Todas as pessoas parecem estar buscando uma comunidade genuína e os autênticos relacionamentos de amor. Pois "o amor, o amor muda todas as coisas", como diz Andrew Lloyd Webber na música Aspects of Love (Aspectos do amor).

E a nossa sincera afirmação cristã é que somente Jesus Cristo pode realizar a terceira aspiração humana básica - a busca por amor. Não estou sugerindo que o amor não exista fora da comunidade cristã, uma vez que também fora dela o amor une pais e filhos, irmãos e irmãs, maridos e esposas. Mas há uma dimensão ainda mais profunda de amor que flui de Cristo, conforme o apóstolo João escreveu em sua primeira carta: "Nisto conhecemos o que é o amor: Jesus Cristo deu a sua vida por nós". E novamente, "nisto consiste o amor: não em que nós tenhamos amado a Deus, mas em que ele nos amou" (1 Jo 3.16; 4.10).

No entanto, infelizmente, há muitas comunidades cristãs que estão distantes do ideal divino, e outras que de maneira bonita se aproximam dele. Elas nos capacitam a afirmar que o propósito de Deus não é apenas salvar indivíduos isolados e, assim, perpetuar nossa solidão, mas construir uma nova sociedade, uma nova família, até mesmo uma nova raça humana, que viva uma nova vida e tenha um novo estilo de vida. O bispo Stephen Neill expressou isso bem:

Dentro da comunhão daqueles que estão unidos pela lealdade pessoal a Jesus Cristo, o relacionamento de amor alcança uma intimidade e uma intensidade desconhecidas em qualquer outro lugar. A amizade entre os amigos de Jesus de Nazaré é diferente de qualquer outra amizade. Deveria ser a experiência normal dentro da comunidade cristã... onde ela é experimentada, especialmente além das barreiras de raça, nacionalidade e língua, é uma das mais convincentes evidências da atividade contínua de Jesus entre os homens.29

Aqui está, então, a busca na qual todos os seres humanos estão engajados. Embora possam não articulá-la desse modo, podemos dizer que, ao buscar por transcendência, eles estão buscando a Deus; ao buscar por significado, eles estão buscando a si mesmos; e ao buscar por comunidade, eles estão buscando ao próximo. Essa é a busca universal da humanidade - por Deus, pelo próximo e por si mesmo.

Além disso, é a nossa afirmação cristã (confiante eu sei, humilde eu espero) que aqueles que buscam encontrarão - em Cristo e em sua nova comunidade. Pois ele morreu para nos reconciliar com Deus; ele demonstrou por meio de sua vida e morte nossa dignidade fundamental; e ele nos apresenta à sua nova sociedade.

O fato de Cristo realizar as aspirações humanas e, assim, nos levar à plenitude de vida é mais uma razão por que sou cristão.

Notas

1. Agostinho, Confissões. Trad. Frederico Ozanam Pessoa de Barros. Rio de Janeiro: Ediouro. Livro 1.i.p.27.

2. LEWIS, C. S. "The Weight of Glory". In: Transposition and Other Addresses. Geofrey Bles, 1949. P. 30.

3. ROSZAK, Theodore. Where the Wasteland Ends. Faber & Faber, 1972. p. 22.

4. Id., ibid. p. 66.

5. Id., ibid. pp. 227,228.

6. Id., ibid. p. 67.

7. Id., ibid. p. 70.

8. Id. Ibid. p.xxi.

9. BERGER, Peter L. Facing up to Modernity (1977). Penguin, 1979. p. 225.

10. Citado em: PORRITT, Jonathon, WINNER, David. The Comming of the Greens. Collins, 1988. pp. 251, 251.

11. WILSON, A. N. Against Religion. Chatto Counterblast n. 19. 1991. pp.3, 20, 44.

12. BEESON, Trevor. Discretion and Valour. Collins 1974 p.24.

13. De sua mensagem ao receber o Prêmio Templeton em Londres, em maio de 1983.

14. SPNGLER, David. The Rebirth of the Sacred. Dell, 1984.

15. Id., ibid. pp. 12, 41.

16. TOYNBEE, Arnold. Citado em: The Times. 5 abril 1969. Veja o seu Experiences. OUP, 1969.

17. FRANKL, Viktor E. Man's Search for Meaning (1959). Washington Square Press, 1963. p.

18. Id., ibid. p. 164.

19. Id., ibid. p. 154.

20. Id., ibid. p. 154.

21. Id., ibid. pp. 167, 204.

22. KOESTLER, Arthur. "Rebellion in Vacuum". Em: Protest and Discontent (simpósio). Ed. Bernard Crick e William Robson. Penguin, 1970. p. 22.

23. DURKHEIM, Emile. Suicide; A Story in Sociology (1897). Tradução para o ingles de 1952. Routledge & Kengan Paul, 1975. p. 246 (DURKHEIM, Emile. O suicídio; estudos de sociologia. Editora Martins Fontes, 2000).

24. TEMPLE, William. Citizen and Churchman. Eyre & Spottiswoode, 1941. p. 74.

25. The Autobiography of Bertrand Russel. George Allen & Unwin. p. 73.

26. DOIG, Desmond. Mother Teresa, Her People and Her Work. Collins, 1976. p. 159.

27. McCANN, Graham. Woody Allen, New Yorker. Polity, 1990. p. 22.

28. Id., ibid. p. 248.

29. NEILL, S. C. Christian Faith Today. Pelican, 1955. p. 174.

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