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A aspereza da vida

Escrito por  Derek Kidner
Rosas murchas

Não temos aqui propriamente uma mudança de assunto, pois a idéia de tempos estabelecidos e do seu poder sobre nós continua presente no versículo 17. Mas o problema da injustiça é demasiadamente comovente para ser tratado como simples ilustração desse tema. Transforma-se num assunto à parte por um breve espaço de tempo no capítulo 4, e vai retornar de vez em quando em passagens posteriores.

Primeiramente, entretanto, podemos vê-lo na apresentação das inversões e súbitas mudanças de direção da vida, que são predominantes no capítulo 3. Pois se há uma coisa que clama por uma reviravolta é a injustiça. Eis aí finalmente alguma coisa obviamente proveitosa nas voltas e reviravoltas de nossos negócios. O fato de que tudo na terra obedece à periodicidade promete um fim ao longo inverno do mal e do desgoverno. Reforça a convicção puramente moral de que Deus julgará (v. 17), sabendo que para este acontecimento, como para tudo o mais, ele já designou uma época adequada.

Isso é muito bom, achamos nós; mas por que a demora? Por que agora ainda não é o tempo adequado para a justiça universal? A essa pergunta não enunciada, os versículos 18 e seguintes dão uma resposta tipicamente dura, considerando que a nossa primeira necessidade não é ensinar a Deus o que ele deve fazer, mas aprender a verdade acerca de nós mesmos, uma lição que nós somos muitos lentos em aceitar. (Mesmo o século vinte nos encontra ainda muito inclinados a negar a nossa maldade inata.) Portanto, quando o versículo 18 diz: para que Deus os prove (ou melhor os desmascare)1e eles vejam que são em si mesmos como os animais, ficamos profundamente chocados. É verdade que o “como os animais” da Almeida Revista e Atualizada é questionável2. Mas temos de admitir que totalmente à parte de nossas tendências para a crueldade e para a sordidez, que nos colocam em uma categoria ainda mais inferior, há pelo menos dois fatos que dão respaldo à acusação: a inclinação para a ganância e para a esperteza em nossos negócios (que é o assunto em discussão, versículo 16), e a mortalidade que os homens partilham com todas as criaturas da terra. O primeiro destes tristes fatos reaparece no próximo capítulo; o segundo ocupa o restante deste e recebe influências de outras partes do Antigo Testamento. O versículo 20, que nos apresenta o homem em sua caminhada do pó para o pó, como em Gênesis 3:19, confronta-nos com a Queda e com a ironia de que morremos como os animais porque nos imaginávamos deuses.

Mas existe em nós alguma coisa que sobreviva à morte? Do seu ponto de vista privilegiado, Eclesiastes só pode responder: Quem sabe?3 O fôlego de vida, ou o espírito4, nestes versículos é a vida que Deus dá tanto aos animais quanto aos homens, e cuja retirada resulta na morte, como diz o Salmo 104:29ss. Está claro que pelo menos isso temos em comum com os animais; mas se “espírito” implica em alguma coisa eterna para nós, ninguém pode chegar a uma conclusão apenas pela observação do texto aqui5.

Mas o eco do Salmo 49, aquele que faz a mesma comparação entre os homens e os animais, nos faz lembrar que há uma resposta. O homem de fé pode dizer: “Mas Deus remirá a minha alma do poder da morte, pois ele me tomará para si” (Sl 49:15). É o homem “em sua ostentação”, o homem sem entendimento, o que é “como os animais, que perecem”6; e este é o homem com o qual Eclesiastes se preocupa.

Para tal pessoa o versículo 22 oferece o melhor que pode dar: a satisfação temporária de executar bem o seu trabalho. Não é coisa de se desprezar. A possibilidade é um legado de um mundo bem criado, como esclarece o versículo 13. Tudo o que estará faltando (mas é virtualmente tudo) será a satisfação de aceitar esse trabalho como um dom do Criador (veja acima, versículo 13), e oferecê-lo a ele.

Com o capítulo 4:1-3 retornamos às opressões que se fazem debaixo do sol, assunto abordado em 3:16. A passagem é tão curta quanto dolorosa, pois se não há um meio de acabar com estas coisas (como na verdade não existe, no tempo presente), pouco se pode acrescentar aos amargos fatos do versículo 1 além do lamento dos versículos 2 e 3. Talvez achemos que esta atitude seja derrotista, pois sempre há muita coisa que pode ser feita pelos que sofrem, quando queremos fazê-lo. Mas esta objeção dificilmente seria honesta. Coelet7 está observando a cena como um todo, e ele pode muito bem retrucar que após cada intervenção concebível ainda restariam inumeráveis bolsões de opressão nas “moradas da crueldade”8 – o suficiente para fazer os anjos chorarem, se não os homens. Ele poderia acrescentar que não há coincidência alguma no fato de o poder se encontrar do lado do opressor, uma vez que é poder que mais rapidamente desenvolve o hábito da opressão. Paradoxalmente, ele limita a possibilidade de uma reforma, porque quanto mais controle o reformador tiver, maior a tendência para a tirania.

Assim um outro aspecto da vida terrena foi apresentado; e nada há mais triste em todo o livro do que a melancólica alusão, nos versículos 2 e 3, aos mortos e aos que ainda não nasceram, que são poupados da visão de tanta angústia. Isto é apropriado, pois embora de um modo geral Eclesiastes esteja preocupado com a frustração, aqui ele se ocupa com o reino do mal, e com o mal em sua chocante forma de crueldade. Se a melancolia de Coelet nos choca excessivamente neste ponto, talvez devamos nos perguntar se a nossa visão mais otimista brota da esperança e não da complacência. Se nós, os cristãos, vemos mais além do que ele se permitiu, não há motivos para nos pouparmos das realidades do presente.

(Derek Kidner, deão da Tyndale House, Cambridge, em “A Mensagem de Eclesiastes”, série “A Bíblia Fala Hoje”, Editora ABU, 2ª ed., 1998, págs. 29/32)

Notas

1. A palavra para “provar” já parece ter o seu sentido posterior de “trazer à luz” (conf. McNeile, pág. 64).

2. O texto não precisa dizer nada mais além disso, que os homens agem como os animais, ou que são animais em certos sentidos indicados pelo contexto. Este versículo, um tanto difícil, diz: “... para que Deus os prove (ou os exponha, veja nota anterior), e eles vejam que são em si mesmos como os animais”. No Sl 14:2 quem vê a situação dos homens é Deus; aqui, ao contrário, o sujeito são as pessoas envolvidas (“e eles vejam”); mas uma mudança de vogal daria “mostrar” (como diz a Bíblia de Jerusalém e a maioria das traduções modernas, seguindo a LXX et al.). As palavras “em si mesmos” foram interpretadas como erro de copista, uma vez que “animais” e “eles” são palavras semelhantes; ou significando “entre si” (“denunciá-los e mostrar que são animais uns para os outros”, BJ); ou “de sua parte”; ou “em si e de si mesmos” (Delitzch). Eu me inclino a aceitar Delitzch ou a BJ.

3. Há versões, como a ARA, que traduzem o versículo 21 como sendo uma afirmação implícita: “Quem sabe que o fôlego de vida (ou o espírito) dos filhos dos homens se dirige para cima”, etc. A vogal hebraica no começo de “se dirige” favorece esta versão (embora não de maneira exclusiva: veja o hebraico de, por exemplo, Nm 16:22; Lv 10:19), mas o hi que vem a seguir comprova o contrário. O ponto de vista geralmente defendido por Coelet, e o presente contexto em particular, apóiam a tradução da Edição Revisada (de acordo com os melhores textos) da Imprensa Bíblica Brasileira.

4. Ambas são tradução de ruah aqui (19, 21). Em Gn 2:7 foi usada uma palavra diferente para o hálito da vida que foi soprado nas narinas do homem no ato da criação.

5. À primeira vista, Ec 12:7 responde a esta pergunta. Mas não é preciso dizer mais do que foi dito em Sl 104:29ss, que Deus dá e retira o hálito da vida de suas criaturas quando quer.

6. Veja Sl 49:12, 14, 15 e 20. A Edição Revisada e a Bíblia na Linguagem de Hoje roubam do salmo o seu clímax, fazendo o versículo 20 simplesmente repetir o v. 12, quando no texto hebraico (e também na ARA) há a frase: “O homem... sem entendimento”.

7. Apenas o título Coelet (“O Pregador”) é usado a partir de Ec 1:2 (7:27; 12:8-10), e a postura do escritor se tornará a de um simples observador, não a de um governante. Veja, por exemplo, 3:16; 4:1-3: 5:8ss

8. Cf. Sl 74:20 (ERC)

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