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B. B Warfield sobre a Humanidade das Escrituras

Escrito por  A. N. S. Lane
A Palavra de Deus

B. B. Warfield é mais conhecido por sua defesa da divina autoria das Escrituras. Em uma geração onde muitos estavam abandonando esta crença, Warfield eloquentemente e poderosamente argumentou pelo reconhecimento das Escrituras como a Palavra de Deus, como “expirada por Deus” (θέοπνευστος) e portanto infalível. Há vários estudos deste aspecto na doutrina de Warfield1. Mas Warfield também tinha muito a dizer sobre a humanidade das Escrituras, sobre a genuína autoria dos escritos bíblicos2. Este aspecto de seu ensino recebeu pouca atenção na literatura secundária3. A meta do presente artigo é retificar esta deficiência.

Escrituras como humana e divina

Quando o cristão afirma sua fé na origem divina de sua Bíblia, ele não quer dar a entender que nega que ela foi composta e escrita por homens para o mundo. Ele acredita que as marcas das origens humanas estão erradicavelmente estampadas em cada página do volume completo. Ele dá a entender que declara apenas que ela não é meramente humana em sua origem4.

Através de sua carreira literária, Warfield consistentemente afirmou o caráter humano real das Escrituras. Em um de seus primeiros escritos ele declara que ‘nós não negamos um elemento humano presente em todo lugar nas Escrituras’5. Em um de seus últimos escritos ele demonstra que, através do Novo Testamento, Escrituras são vistas como ‘o produto do homem, mas somente do homem falando a partir de Deus’. Ele conclui sua análise do material do Novo Testamento com o resumo:

As Escrituras, em outras palavras, são concebidas pelos escritores do Novo Testamento como completamente livro de Deus, em cada parte expressiva de Sua mente, dada através de homens segundo uma forma tal que não faz violência à natureza deles como homens, e se constitui também livro de homens assim como de Deus, em cada parte expressiva da mente de seus autores humanos6.

Em outras palavras, a Bíblia deve ser vista como um livro tanto humano como divino. Isto não quer dizer que a Bíblia é parcialmente humana e parcialmente divina. Sobre este ponto o mais maduro Warfield acha necessário qualificar sua anterior declaração7 de um ‘elemento’ humano na Bíblia.

Seria inexato falar que (os autores do Novo Testamento) reconhecem um elemento humano nas Escrituras: eles não parcelam as Escrituras, atribuindo porções dela, ou elementos nela, respectivamente a Deus e homem. Em sua visão de toda a Escritura em todas suas partes e em todos seus elementos, até ao mínimo minutiae, na forma de expressão assim como em substância de ensino, é de Deus; mas toda ela foi dada por Deus através da instrumentalidade de homens. Há, então, em sua visão, não de fato, um elemento humano ou ingrediente nas Escrituras, e muito menos divisões humanas ou seções das Escrituras, mas um lado ou aspecto humano das Escrituras; e eles não falham em dar reconhecimento completo deste lado ou aspecto humano8.

Assim, ‘de cada palavra das Escrituras deve-se afirmar, por sua vez, que é palavra de Deus e que é palavra de homem. Todas as qualidades da divindade e da humanidade devem ser procuradas e podem ser encontradas em cada porção e elemento das Escrituras’9. Ao escrever a Bíblia, Deus e homem são coautores. As palavras das Escrituras são tanto as palavras de seus autores humanos como ‘as palavras de Deus, a adequada expressão de Sua mente e desejo’10.

Para Warfield, as Escrituras são tanto humanas como divinas. É importante, ele mantém, que estes dois sejam mantidos em equilíbrio. Nenhum pode ser enfatizado em detrimento do outro11. Formalmente, Warfield se mantém nesta regra Mas na prática há muito mais ênfase em seus escritos da autoria divina das Escrituras. Ma maior parte, mas não todas12, das passagens que até então citam a referência à humanidade das Escrituras vêm no contexto de uma ênfase em sua autoria divina. Muitas, mas não todas, as suas referências à humanidade das Escrituras são feitas como concessão. Na segunda passagem citada acima, Warfield reconhece ‘um elemento humano presente em todo lugar nas Escrituras’. Por quê? ‘Nenhuma marca do efeito deste elemento humano então – em estilo de pensamento ou palavreado – pode ser afirmado contra a inspiração’13. Em outras palavras, a referência à humanidade das Escrituras é nesta instância uma parte de sua apologética para a autoria divina das Escrituras. Em outros escritos, notavelmente em seu ensaio sobre O Divino e Humano na Bíblia14, ele está preocupado em afirmar a autoria humana das Escrituras como uma verdade a ser mantida em igual peso com sua autoria divina. Mas através de seus escritos como um todo, Warfield enfatiza a divina autoria das Escrituras bem mais do que a humana.

Por que há este desequilíbrio nos escritos de Warfield? De seus escritos, três razões podem ser colhidas as quais ele mesmo poderia sem dúvida oferecer como meio de defesa. Primeiro, algumas vezes ele argumenta que os próprios escritores do Novo Testamento enfatizam a autoria divina das Escrituras, ao invés da humana15. Segundo, no tempo de Warfield era a autoria divina das Escrituras que estava sob ataque. Este foi o ponto de controvérsia, o ponto onde a verdade estava na mira16, então naturalmente Warfield dedicou sua atenção àquele ponto. Finalmente, Warfield manteve que a autoria humana das Escrituras era em seu tempo universalmente reconhecida. ‘Provavelmente ninguém hoje enfatiza tanto o divino elemento nas Escrituras que exclui o humano no processo’17. Mas a expressão ‘no processo’ é significativa. Talvez a teologia conservadora no tempo de Warfield não ‘excluia o humano no processo’. Mas ela dava um adequado reconhecimento ao humano nas Escrituras? Warfield era rápido em criticar aqueles que, embora não excluíssem no processo o aspecto humano das Escrituras, falhavam em retratá-lo adequadamente. Era ele igualmente sensível à falha de representar o aspecto humano adequadamente?

Modo de inspiração

Como pode um escrito ter dois autores, um humano e outro divino? Para manter a genuína autoria humana da palavra de Deus escrita, não é suficiente meramente afirmar que há autores humanos. Deve haver pelo menos um relato de como esta autoria dual é possível.

Enquanto reconhecia que não era prático naquele estágio avançado de abandonar a palavra completamente, Warfield advertiu contra a palavra ‘inspiração’. Não é um termo bíblico e se nós formos usá-lo nós devemos nos acautelarmos da importação de ideias que são estranhas ao pensamento bíblico Etimologicamente, ‘inspiração’ sugere a ideia de ‘respirar para dentro’, implicando que a Bíblia é ‘um produto humano respirado pelo Divino Espírito’. Mas a figura bíblica é mais das Escrituras sendo ‘expiradas’ por Deus, da Bíblia como ‘um produto Divino produzido através da instrumentalidade dos homens’18.

Se Deus é o autor da Bíblia, que ‘a expirou’, isto não significa que os escritores humanos simplesmente receberam o texto das Escrituras por divino ditado? Warfield repetidamente negou isto. Mas tal visão alguma vez foi mantida? Em um de seus trabalhos mais antigos, Warfield clama que ‘as igrejas Reformadas nunca mantiveram tal teoria (mecânica de inspiração)’, citando Charles Hodge em suporte nesta disputa19. Pouco depois, Warfield foi coautor com A. A. Hodge (filho de Charles) de um importante artigo sobre a inspiração. Neste artigo Hodge reconhece que ‘muitos’ antigos defensores da inspiração verbal mantiveram ‘concepções extremamente mecânicas de Inspiração’20. Desde então Warfield mesmo reconheceu que alguns teólogos do século dezessete ensinaram uma teoria mecânica de inspiração que fazia dos escritores humanos ‘meros utensílios nas mãos do Espírito Santo’, meramente as canetas do Espírito Santo. Sobre esta visão, ‘foi negado que os escritores humanos atribuíram qualquer qualidade ao produto, a menos que, de fato, esta fosse sua escrita à mão’21! Mas as ‘óbvias marcas da autoria humana’ nos livros bíblicos preveniram esta visão de se tornar dominante e Warfield não a considera ser mais uma ameaça em seus próprios dias22. Em uma data posterior ele continuou em reconhecer que ‘em cada época da Igreja tem havido representantes da teoria do ditado’, apesar dele imediatamente seguir isto declarando que ‘somente na teologia Protestante do século dezessete, contudo, ela tendeu a se tornar dominante’23. Contudo, nesta instância ele está incluindo aqueles que modificaram a teoria do ditado de tal forma que excluem um ditado mecânico e permitem que os escritores humanos escrevessem ‘livremente de acordo com suas peculiaridades individuais’. Enquanto tais teólogos usaram a palavra ‘ditado’, eles não mantiveram a teoria do ditado mecânico e a diferença entre sua visão e a visão de Warfield é verbal. Mas enquanto Warfield parece ter mudado sua opinião um pouco a respeito da existência ou não de tais teorias no passado, ele foi consistente em rejeitá-las24.

Como Warfield evitou ensinar a inspiração por ditado divino? Se as Escrituras são ‘expiradas’ por Deus, isto não significa que Deus as ditou aos autores humanos? Não. ‘O que é declarado por esta passagem fundamental (2 Tim. 3:16) é simplesmente que as Escrituras são um produto Divino, sem nenhuma indicação de como Deus operou em produzí-las’25. Mas se, como Warfield mantém, a Bíblia é verbalmente inspirada e Deus é o autor das próprias palavras das Escrituras, que papel é deixado para os escritores humanos além de ser secretários? A resposta de Warfield é que enquanto Deus é o autor das Escrituras, assim também são os escritores humanos. Deus e homens são coautores26. Aqui Warfield se refere a A. A. Hodge que, em seu trabalho juntos sobre a inspiração, explicou o significado da inspiração verbal. Inspiração é chamada verbal para deixar claro que ela não se estende apenas ao pensamento dos escritores mas às próprias palavras que eles usaram. Não se pode supor que Deus meramente colocou ideias nas mentes dos autores bíblicos e então os deixou colocá-las em palavras da melhor forma que podiam. Mas ao clamar que as próprias palavras eram inspiradas não se implicava que os escritores humanos não eram também seus autores. ‘Os pensamentos e palavras são ambos igualmente humanos, e, então, sujeitos à limitação humana, mas a divina superintendência e garantia estende a um assim como ao outro’27.

Muitas pessoas acham difícil entender Hodge e Warfield neste ponto. Se alguém começa com a suposição que onde Deus é ativo, o homem é inativo e vice-versa, se torna impossível entender seu ensino, sem falar em aceitá-lo. Sobre esta suposição, se as Escrituras são sopradas por Deus, os escritores são meros secretários; se inspiração é verbal, os escritores humanos não contribuíram em nada. Mas Warfield não aceitará esta suposição.

Outros parecem conceber os dois fatores (divino e humano) na inspiração como se esforçando um contra o outro e procurando excluir um ao outro, e os dois elementos no produto como se estivessem um de costas para o outro, dividindo a Bíblia entre eles. Cru e mecânico como isto pode parecer, tal concepção parece extraordinariamente comum, e se faz ouvir nos lugares mais incomuns28.

É um erro imaginar que o divino e o humano na Bíblia são elementos em competição, de forma que ‘onde um entra o outro é puxado para fora’. Assim que esta abordagem é adotada, logo não se achará lugar para a divina inspiração. ‘Se, então, for descoberto que toda a fabricação da Bíblia é humana – o que seguramente é verdade – homens que começarem com este conceito em mente deverão terminar negando toda a fabricação da Bíblia que é divina’29. É porque eles começam com esta falsa antítese que alguns escritores recentes buscaram, para pintar Warfield com o pincel do ditado. James Barr é impaciente com as negações de Warfield de ditado, porque ele assume que, onde Warfield reconhece um elemento humano nas Escritras, ele deveria enfraquecer o elemento divino e vice-versa. Assim para Barr, afirmar a autoria divina total é contrabandear o ditado e permitir elementos humanos é inconsistente30. W. J. Abraham reprova conservadores por serem inconsistentes ao manter a inerrância enquanto rejeitam o ditado.

Sem o ditado, inerrância é sem garantia, pois os dois são ligados por meio de inferência lógica. Ditado é a fundação de onde o clamor de inerrância flui; não flui da inspiração a menos que os dois sejam confundidos31.

Abraham reconhece que Warfield e seus seguidores rejeitam o ditado, mas argumenta que ‘o clamor de inerrância se baseia em um apelo velado ao ditado’32. A suposição parece ser que aqueles que rejeitam o ditado devem como resultado considerar as Escrituras como algo menos divinamente inspirado. Mas Warfield rejeita o ditado não porque ele não acredita que cada palavra é divinamente inspirada, mas porque ele também acredita que o escritor humano seja o autor genuíno. Warfield disputa com a teoria do ditado não porque ela atribui demais ao autor divino mas porque ela não deixa nenhum espaço significativo para o autor humano33. Clark Pinnock cai na mesma armadilha que Barr e Abraham. Ele não pode tomar as rejeições conservadoras a sério. ‘Materialmente eles acreditam nele (ditado), mas não formalmente... É esquivar-se com palavras, negá-lo tão vigorosamente’34. Ele não consegue levar o clamor de Warfield à sério que Deus e homem são coautores das Escrituras porque ele não consegue ver a coerência no clamor de que Deus completamente controla o curso da história através de sua providência35. Ele está muito certo em ver a ligação com a providência e perceber que o ponto básico é a natureza do relacionamento de Deus com Seu mundo. Warfield acusa aqueles que veem o divino e humano nas Escrituras como mutuamente exclusivos de pensar em termos deísticos.

Porque não podemos acreditar que o Deus que faz seus propósitos frutificarem em seu governo providencial do mundo, sem violência às causas segundas ou à agência livre inteligente de suas criaturas, assim superintende os processos mentais de seus instrumentos escolhidos para fazer conhecer sua vontade, em assegurar que eles falem suas palavras ao falarem suas próprias?36

Para Warfield, a autoria divina e humana estão em parceria, não em competição. Ele considera ‘o Espírito de Deus e o espírito do homem como cofatores na produção das Escrituras, trabalhando tão juntos que o processo inteiro é tanto humano e divino em todas as suas partes’37. Ele declara ‘a coatividade dos autores humanos e divino na produção das Escrituras’38. Warfield chama esta teoria de concursus. Ele a estabelece como se segue:

O princípio fundamental deste conceito é que todas as Escrituras são o produto da atividade divina que entra nelas, contudo, não por substituir as atividades dos autores humanos, mas confluente com elas; de forma que as Escrituras são produto unido de atividades humanas e divinas, ambas penetrando nelas em cada ponto, trabalhando harmoniosamente juntas para a produção de um escrito que não é divino aqui e humano ali, mas ao mesmo tempo divino e humano em toda parte, toda palavra, e todo particular. De acordo com esta concepção, então, toda a Bíblia é reconhecida como humana, o produto livre do esforço humano, em cada parte e palavra. E ao mesmo tempo, toda a Bíblia é reconhecida como divina, a Palavra de Deus, seus discursos, dos quais ele é no mais verdadeiro sentido o Autor. Os fatores divinos e humanos na inspiração são concebidos como fluindo confluentemente e harmoniosamente para a produção de um produto comum. E os dois elementos são concebidos nas Escrituras como constituintes inseparáveis de um único e não composto produto39.

Muito bem dito! Mas o que isto significa? Será que ele tem algum ‘valor real’ ou é apenas retórica? Já que Warfield ainda é acusado de ser um ditacionista escondido no armário, é importante examinar a extensão a qual se atribui aos autores humanos um papel real na composição das Escrituras. Em uma passagem importante40, Warfield discute como as Escrituras foram escritas.

É claro, estes livros não foram produzidos repentinamente, por algum ato miraculoso – herdado completo do céu, como a frase diz; mas como todos os outros produtos do tempo, são o último efeito de muitos processos cooperando através de longos períodos41.

Como é bem sabido, Warfield mantinha que eram as cópias originais das Escrituras, os ‘autógrafos’, que são inspirados e infalíveis. Esta posição é algumas vezes criticada por falhar em reconhecer que muitos dos livros da Bíblia como nós os temos hoje são o produto final de um longo processo de desenvolvimento literário. Mas Warfield mesmo estava bem ciente que os escritos bíblicos tiveram uma pré-história e não via problema nisto. ‘A produção das Escrituras é, de fato, um longo processo’42. Para ser justo, deveria ser notado que Warfield está aqui pensando primariamente no processo que ocorre dentro do próprio autor. Mas a pré-história do texto não levanta nenhuma questão fundamentalmente diferente daqueles levantados pela pré-história do autor. Além do mais, Warfield reconhece ‘a progressiva revelação da própria verdade Divina’43 e uma teoria da inspiração que acha lugar para isto não deve ter dificuldades com a ideia da pré-história literária do texto.

Um fator maior na produção das Escrituras é a preparação por Deus dos autores:

Uma preparação física, intelectual, espiritual que deve ter os ocupado durante toda suas vidas, e, de fato, deve ter iniciado em seus ancestrais remotos, e o efeito do qual foi trazer os homens certos aos locais certos nos tempos certos, com os certos dons, impulsos, aquisições, para escrever justamente os livros que foram designados a eles.

Inspiração, então, não é ‘uma ação isolada do Divino Espírito operando fora de toda relação aos processos históricos’44. Deus preparou a escrita de cada livro ao preparar os próprios autores.

Se Deus desejou dar ao Seu povo uma série de cartas como as de Paulo, Ele preparou um Paulo para escrevê-las, e o Paulo que Ele trouxe para a tarefa era um Paulo que espontaneamente escreveria tais cartas45.

O mesmo processo pode ser visto no escrito da ‘história sagrada’, tal como as Crônicas, ou no de um salmo, ou no de uma epístola didática. A preparação do salmista é particularmente interessante já que os salmos contém algumas das partes mais ‘humanas’ das Escrituras. Deus em sua providência prepara o salmista, dando a ele a certa tendência hereditária de seus pais, a certa qualidade de sensibilidade religiosa, o correto exemplo religioso e treinamento, as circunstâncias certas de vida para desenvolver estas tendências e as certas experiências para despertar nele as emoções desejadas. Finalmente, ele é colocado precisamente naquelas exigências que invocariam a expressão destas emoções46.

Tudo isto cai no reino da providência. Finalmente vem ‘a operação Divina adicional que nós chamamos tecnicamente de “inspiração”’:

Através dela, o Espírito de Deus, fluindo confluentemente com o trabalho providencialmente e graciosamente determinado dos homens, espontaneamente produzindo sob as direções Divinas os escritos atribuidos a eles, dá ao produto uma qualidade Divina inacessível apenas a poderes humanos47.

A espontaneidade dos autores humanos deve ser particularmente notada. ‘Deus usa homens na inspiração, através das atividades espontâneas de seus próprios poderes humanos’48. As Escrituras são escritas ‘através e pelo homem como agente voluntariamente ativo e inteligente em sua comunicação49.

Que analogias Warfield usa para explicar o processo de inspiração? Rogers e McKim declaram que ele ‘tomou cuidado em rejeitar a analogia das naturezas humana e divina de Cristo como uma explicação do divino e humano nas Escrituras’50. Isto não é bem verdade. Em uma passagem que eles citam, Warfield indica os pontos onte a analogia não se mantém. Mas nenhuma analogia se mantém em todos os pontos e Warfield está declarando que a analogia é fraca ao invés de rejeitá-la.

A analogia mantém bem uma certa distância... Mas a analogia com a personalidade divino-humana de nosso Senhor pode facilmente ser estressada além da razão... Entre assuntos tão diversos poderia existir apenas uma analogia remota; e, de fato, a analogia na presente instância não chega a mais do que, em ambos os casos, fatores divinos e humanos estão envolvidos, apesar de ser em formas bem diferentes51.

Mas, ele continua, ‘mesmo uma analogia tão distante’ pode nos ajudar a ver que assim como Jesus era verdadeiramente homem mas sem pecado, assim as Escrituras podem ser verdadeiramente humanas mas sem erro52.

Rogers e McKim corretamente observam que Warfield preferia analogias com o trabalho do Espírito Santo na conversão e santificação e as atividades de Deus na providência e graça53. A. A. Hodge, em seu trabalho conjunto, apontou que:

A única oposição realmente perigosa à doutrina de Inspiração da Igreja vem ou diretamente ou indiretamente, mas ultimamente sempre, de uma falsa visão da relação de Deus com o mundo, dos seus métodos de trabalho, e da possibilidade de uma agência sobrenatural penetrando e alterando o curso do processo natural. Mas todo o gênio da Cristandade, toda suas doutrinas essenciais e mais características, pressupõem a imanência de Deus em todas Suas criaturas, e Sua concorrência com eles em todas as suas atividades espontâneas54.

Isto é visto na crença de que Deus sustenta o universo, o governa por sua providência e salva homens por sua graça. Em cada caso, Deus está em trabalho sem de qualquer forma ‘interferir nos atributos pessoais ou das atividades racionais livres da criatura’55. Assim é com a inspiração. Warfield toma a ilustração. Ele repetidamente se refere à analogia com a providência e com a graça56. Assim como Deus desempenha seus propósitos providenciais ‘sem violência às causas secundárias ou à inteligente livre agência de suas criaturas’, assim também ele direciona os escritores bíblicos ‘para assegurar que eles digam suas palavras ao falar as palavras deles’57. Os trabalhos de Deus na providência, graça e inspiração devem ser concebidas ‘como confluentes com as atividades humanas operativas no caso; como, em uma palavra, na natureza do que veio a ser conhecido como “ação imanente”’58. É importante se dar conta que isto é mais do que uma analogia. É que providência, graça e inspiração são cada um baseados no mesmo princípio da relação de Deus com o mundo e sua atividade nele.

A base filosófica deste conceito (concursus) é a ideia cristã de Deus como imanente assim como transcendente nos modos de sua atividade. Sua ideia do modo de atividade divina na inspiração está em analogia com os modos divinos de atividade em outras esferas – na providência, e na graça onde nós desenvolvemos nossa própria salvação com temor e tremor, sabendo que é Deus que está trabalhando em nos tanto o querer e o fazer de acordo com Seu próprio bom prazer59.

É natural que aqueles que não aceitam este conceito da relação de Deus com o mundo e sua atividade nele terá problemas com a ideia de Warfield de concursus. Mas enquanto eles possam achar difícil aceitá-la, eles deverão pelo menos concordar que é claramente distinto do ditado. Pode-se também notar que se a concepção de Warfield da relação de Deus com o mundo e sua atividade nele é rejeitada, é muito difícil encontrar algum sentido na doutrina bíblica da providência60.

Até agora a impressão foi dada que para Warfield o princípio de concursus explica a inspiração da Bíblia inteira. Isto Warfield parece dar a entender em um escrito mais antigo61. Quinze anos depois, Warfield incorporou muito de seu material em outro trabalho, com uma adição significativa (aqui enfatizada): ‘Toda a Bíblia é reconhecida como humana, o produto livre do esforço humano, em cada parte e em cada palavra – com a exceção de uma relativamente pequena parte que veio por direta revelação’62. Esta qualificação se refere ao início do trabalho, onde Warfield distingue entre as diferentes formas nas quais ‘o divino entrou na produção das Escrituras’. Da preparação do material e dos autores até o ato de escrever o texto, ‘divinas influências dos mais variados tipos estiveram trabalhando, estendendo da simples superintendência providencial e iluminação espiritual à direta revelação e inspiração’63. (Warfield nota que se todas estas influências fossem incluídas sob o mesmo nome de ‘inspiração’ (que não é como ele escolheria usar a palavra) ‘então é inegável que algumas partes da Bíblia são mais inspiradas que outras’64.)

Em uma data posterior Warfield esclareceu mais precisamente os três modos de revelação. Primeiro há a ‘manifestação externa’, como em uma teofania ou milagre. Então há a ‘sugestão interna’, que inclui a profecia, visões e sonhos, que vêm ‘não pela vontade do homem mas de Deus’. Finalmente há a ‘operação concursiva’, que é ‘aquela forma de revelação ilustrada em um salmo, epístola ou história inspirada, onde nenhuma atividade humana – nem mesmo o controle da vontade – é sobreposto, mas o Espírito Santo trabalha em, com e através deles todos de tal forma que comunica ao produto qualidades distintamente sobre-humanas.’65. De acordo com esta classificação, a maior parte da Bíblia vem por ‘operação concursiva’, enquanto o elemento profético é a ‘relativamente pequena parte que veio por direta revelação’. Profecia, diferente do resto das Escrituras, é dada por ‘ditado’, ‘apesar, é claro, da questão poder se manter aberta sobre o exato processo pelo qual este ditado é feito’66. ‘A função precisa de um profeta [é] que ele é “uma boca de Deus”, que fala não suas próprias palavras mas as de Deus’67. ‘É indubitavelmente a disputa fundamental dos profetas que as revelações dadas por eles não são suas próprias mas completamente as de Deus’68. Estas declarações são baseadas em uma grande quantidade de citações do Velho Testamento. Os profetas eram passivos em respeito à revelação dada através deles. Mas esta declaração precisa ser qualificada:

O termo ‘passividade’ é talvez, responsável por algum mal-entendido, e não deve ser estressado demais. Não se intenciona negar que a inteligência dos profetas era ativa na recepção de sua mensagem; foi por meio de sua inteligência ativa que sua mensagem foi recebida: sua inteligência foi o instrumento da revelação. Se intenciona negar somente que sua inteligência foi ativa na produção de sua mensagem: que ela foi na criação, diferente de uma recepção ativa... Sua inteligência é ativa na recepção, retenção e anúncio de sua mensagem, contribuindo em nada a elas a não ser por se apresentar como instrumentos para a comunicação delas69.

Warfield nota que muitos querem atribuir um papel maior que este aos autores proféticos, mas na própria visão ‘dos profetas’, eles eram apenas instrumentos através de quem Deus deu revelações, que vieram a eles, não como seu próprio produto, mas como ‘a pura palavra de Jeová’70. Deus os usou como instrumentos, mas ‘Ele usará todos os instrumentos que Ele emprega segundo suas naturezas; seres inteligentes então como seres inteligentes, agentes morais como agentes morais’71. Deus forma a mensagem que Ele dá para o profeta na própria linguagem do profeta, que é em ‘sua própria linguagem particular, inclusive com tudo que dá individualidade a sua autoexpressão’72. Segue-se então, que:

As marcas de várias individualidades impressas nas mensagens dos profetas, em outras palavras, são somente uma parte do fato geral que estas mensagens são formuladas na linguagem humana, e de forma alguma acima deste fato geral elas afetam sua pureza como comunicação direta de Deus73.

Warfield quase parece estar dizendo que Deus ditou sua palavra aos profetas de tal forma (usando seus estilos individuais, etc) a fazer ela parecer como se tivesse vindo através da ‘operação concursiva’. Ele está ciente desta objeção e procura respondê-la:

Nós devemos evitar pensar disto (uso do estilo dos profetas por Deus, etc) externamente e portanto mecanicamente, como se o Espírito de revelação formou artificialmente a mensagem que Ele dá através de cada profeta nas formas particulares de discurso próprias à individualidade de cada um, para criar a ilusão de que a mensagem saiu do coração do próprio profeta74.

Mas se as marcas do estilo individual não são uma ilusão, não deve haver um elemento de ‘operação concursiva’? Na verdade, os profetas clamavam que sua mensagem foi dada por Deus, mas argumentar que eles então não tiveram parte alguma em sua composição é certamente cair na mesma armadilha que Warfield alerta, de ver a atividade de Deus e dos homens como mutualmente exclusivas. Além do mais, se a profecia precisa ser dada por ditado para que seja ‘a pura palavra de Jeová’, isto não sugere que o resto das Escrituras não são ‘a pura palavra de Jeová’? Warfield mesmo sentiu a força deste argumento já que ele imediatamente teve que alertar contra estressar demais a distinção entre profecia e operação concursiva75.

Para o Warfield mais velho, partes da Bíblia foram dadas por ditado divino. Dois pontos podem ser notados aqui. Primeiro, ele sai de sua normal teoria da ‘operação concursiva’ com base em como os próprios profetas representam seu ensino. Alguém poderia desejar questionar o uso de Warfield da categoria de ditado aqui. Mas não seria justo acusá-lo de ser dogmático neste ponto, pois o uso de Warfield da categoria de ditado é precisamente a vitória dos dados bíblicos como ele os vê (o auto entendimento dos profetas) sobre o dogma (concursus). Segundo, deve-se notar que a posição de Warfield aqui se levanta de sua sensibilidade aos diferentes gêneros literários das Escrituras. Warfield não considera a inspiração da Bíblia como um processo uniforme que afetou cada parte da mesma forma. Em adição a notar as diferenças entre história, salmo e epístola, Warfield aqui toma nota da adicional categoria de profecia, onde o autor diz ‘Assim diz o Senhor’.

Warfield tem sido acusado de cair em uma abordagem de ditado mecânico em algumas passagens específicas. J. H. Gerstner argumenta contra a declaração que o resultado da inspiração é ‘uma pura palavra de Deus livre de toda mistura humana’. Warfield deveria ter dito ‘livre de toda mistura pecaminosa ou errante’, ele clama76. Mas isto seria realmente pedante. Em outra passagem, não notada por Gerstner, Warfield novamente declara que a Bíblia é ‘a pura palavra de Deus, não diluída com nenhuma mistura humana’77. Em nenhuma passagem Warfield está negando a realidade da contribuição dos autores humanos. O que ele está negando é que eles de alguma forma diluíram ou corromperam as palavras de Deus, que há um elemento na Bíblia que é puramente humano.

Rogers e McKim citam outra passagem onde Warfield declara que ‘a autoridade das Escrituras é demonstrada ser inerente mesmo em suas vogais, seus tempos, seus números e suas formas de discurso, como palavras de Deus’78. Chamar isto ditado é esquecer toda a ideia de concursus. A defesa de A. A. Hodge e Warfield da inspiração verbal deveria ser suficiente para confrontar esta objeção. As palavras das Escrituras são palavras de Deus – e do homem. Inspiração trabalha de forma a assegurar que os autores humanos ‘falem Suas (de Deus) palavras ao falar de suas próprias’79.

Em resumo, Warfield, através do seu conceito de concursus consegue manter juntos a autoria divina e humana das Escrituras. Sua declaração de que a Bíblia é verdadeiramente as palavras de homens não é somente uma declaração retórica formal criada para fugir da terrível acusação de ditado. Ela representa um real papel criativo que Warfield dá para os autores humanos. Que ele não estava aterrorizado por ser ligado ao ditado pode ser visto em sua aceitação do termo ao descrever o processo de profecia – porque era assim que ele sentia que os profetas o forçavam a descrevê-lo. É somente neste ponto que Warfield pode justamente ser acusado de enfraquecer a humanidade das Escrituras. Muitos, é claro, sentirão que ele estava certo em fazer assim nesta particular instância.

As implicações da humanidade das Escrituras

Nós concluímos que Warfield leva a autoria humana das Escrituras à sério em seu relato de sua composição. Mas ele dá devido peso às implicações desta crença? Ele permite a ela amplo espaço ao considerar pontos como a confiança e interpretação das Escrituras?

O resultado da inspiração é que as palavras dos autores humanos ‘foram feitas também as palavras de Deus, e, portanto, perfeitamente infalíveis’80. O Espírito Santo dominou de tal forma os autores humanos que ‘suas palavras se tornaram ao mesmo tempo as palavras de Deus, e assim, em todo caso e de forma igual, absolutamente infalível’81. A superintendência do Espírito assegura, entre outras coisas, ‘inteira verdade’ ou ‘inerrância’82. Ao considerar a confiabilidade das Escrituras, Warfield argumenta simplesmente através de sua autoria divina. Rogers e McKim parecem então ser justificados ao acusá-lo, nesta área, de não permitir ‘nenhuma manifestação prática do elemento humano nas Escrituras’83. Mas isto não é assim. A infalibilidade das Escrituras é chamada de ‘absoluta’, mas isto é de certa forma enganoso como Warfield de fato o qualifica em respeito à autoria humana. Warfield reconhece a existência nas Escrituras de vários elementos que são consequência de sua humanidade, sem minar sua autoria divina: ‘influência humana no estilo, palavreado ou formas de declaração ou argumentação’; impreciso uso da linguagem como ‘todo o mundo’ para o mundo Romano ou referência ao pôr do sol; liberdade ao citar do Velho Testamento sem fazer isto de forma literal ou ao reportar o discurso de Cristo sem usar o ipsissima verba84. A, A. Hodge, em seu trabalho conjunto, declara que ‘os pensamentos e palavras (dos escritores bíblicos) são igualmente humanos, e, portanto, sujeitos às limitações humanas’ e até mesmo que as Escrituras ‘são escritas em linguagens humanas, cujas palavras, inflexões, construções e idiomas sustentam em todo lugar traços de imperfeição humana’85. Ele também argumenta que as Escrituras são verdadeiras sem necessariamente serem precisas:

Há uma grande diferença entre a precisão da declaração, que inclui uma exaustiva tradução de detalhes, uma literalidade absoluta, que as Escrituras nunca professam, e exatidão, por outro lado, que assegura uma declaração correta de fatos ou princípios que se pretende afirmar. É esta exatidão e esta somente, como distinta da precisão, que a doutrina da Igreja mantém de cada afirmação no texto original das Escrituras sem exceção86.

O próprio Warfield retoma este ponto posteriormente no artigo:

Ninguém clama que Inspiração assegurou o uso do Grego na severidade do gosto Ático, livre de exageros e negligência da fala atual, mas somente que ela assegura a exata expressão da verdade, mesmo por meio do pior Grego que um pescador galileu poderia escrever, e as mais impressionantes figuras de linguagem que um camponês poderia inventar. Exegese deve ser histórica assim como gramatical, e deve sempre buscar o significado intencionado, não qualquer significado que pode ser extraído de uma passagem87.

A conversa de Warfield sobre infalibilidade absoluta é infeliz e dá alguma credibilidade à acusação feita por Rogers, McKim e outros. Mas de fato a infalibilidade das Escrituras é para Warfield qualificada por sua humanidade, apesar de que não é de tal forma a afirmar erro nas Escrituras.

Rogers e McKim corretamente notam que Warfield se opunha ao ensino de James Stuart que Cristo e os apóstolos se acomodaram às visões correntes da inspiração das Escrituras, sem eles mesmos as manterem. Warfield rejeita esta concepção de acomodação88. Eles se lamentam que ‘Warfield não tomou seu entendimento da acomodação do seu uso nos antigos pais e Calvino. Ele parece estar totalmente ignorante do conceito como eles o usaram – para se referir a Deus condescendendo às limitações humanas para o benefício humano’89. É verdade que Warfield é fraco neste ponto e que sua doutrina das Escrituras deveria ter sido enriquecida se ele estivesse mais disposto a aprender de Calvino aqui90. Mas Rogers e McKim perdem uma passagem onde Warfield permite um uso positivo do conceito da acomodação. Ao considerar o papel do autor humano na profecia, Warfield aceita a ideia da ‘acomodação do Deus revelador às várias individualidades proféticas’. Ele continua explicando o que isto significa:

Isto inclui, de um lado, a ‘acomodação’ do profeta, através de sua total preparação, ao discurso no qual a revelação a ser dada através dele deverá ser vestida; e de outro lado envolve um pouco mais que a consistente condução aos detalhes do amplo princípio que Deus usa os instrumentos que Ele emprega de acordo com suas naturezas91.

Finalmente, deveria se notar que o autor humano das Escrituras tem implicações para sua interpretação. Como já se viu, Warfield insiste que ‘exegese deve ser histórico assim como gramatical, e deve sempre buscar o significado intencionado (pelo autor humano), não qualquer significado que pode ser estressado de uma passagem’92. Warfield conclui seu artigo sobre o Divino e Humano na Bíblia desta forma:

E completa justiça sendo feita a ambos (divino e humano) elementos na Bíblia, completa justiça é feita também às necessidades humanas. ‘A Bíblia’, diz Dr. Westcott, ‘é autoritativa, pois é a Palavra de Deus; é inteligível, pois é a palavra de homem’. Por ser a palavra de homem em cada parte e elemento, ela chega aos lares de nossos corações. Por ser a palavra de Deus em cada parte e elemento, é nossa constante lei e guia93.

Quando Warfield discute a confiabilidade e interpretação da Bíblia ele toma a autoria humana em consideração. Na interpretação das Escrituras, Warfield estressa a intenção do autor humano, assim deixando claro que a autoria humana deve ser tratada com completa seriedade94. Com a confiabilidade das Escrituras, alguns relatos são tomados da autoria humana, mas o foco está na inspiração divina. Warfield não pode ser justamente acusado de ignorar a humanidade das Escrituras neste ponto, mas ele pode ser criticado por falhar por tomá-lo suficientemente em conta.

Pós-escrito

Warfield apresentou um poderoso caso para a autoridade divina das Escrituras como a palavra de Deus e isto tem sido visto como ‘ortodoxia evangélica’. Mas como evangélicos têm se envolvido mais e mais no reino da crítica bíblica, muitos têm sentido que a doutrina de Warfield é muito rígida para ser usada hoje. Há sinais de uma alarmante divisão entre os dogmatistas que seguem Warfield e os eruditos bíblicos que estão insatisfeitos com ele. Como construir uma ponte sobre este rio? Como pode uma doutrina das Escrituras ser desenvolvida, que é tanto ortodoxa e capaz de explicar o fenômeno das Escrituras? Alguns procuraram fazer isto abandonando a crença de Warfield nas Escrituras como as palavras de Deus: o que as Escrituras dizem, Deus diz95. Mas tais tentativas não produzirão uma doutrina que é ortodoxa. O caminho adiante não é enfraquecer a firme compreensão de Warfield da divina autoria das Escrituras, não mais do que negar a divindade de Cristo como sendo uma cura para o docetismo. O que é necessário não é uma diminuição de nossa compreensão das Escrituras como a palavra de Deus, mas um aumento de nossa compreensão de sua autoria humana. Warfield dá completo e formal reconhecimento da autoria humana das Escrituras, mas ele pode justamente ser acusado de falha ao desenvolver as implicações disto. O caminho para evitar uma divisão entre os dogmatistas e os eruditos bíblicos não é abandonar a visão de Warfield das Escrituras como as palavras de Deus, mas desenvolver sua doutrina da autoria humana.

Fonte: © 1986 London School of Theology (http://www.lst.ac.uk/).


Notas

1. Um número de trabalhos será referenciado nas notas de rodapé. Eu não fui capaz de consultar as teses americanas sobre o assunto, dos quais J. J. Markarian, The Calvinistic Concept of the Biblical Revelation in the Theology of B. B. Warfield (Ph.D., Drew University, 1963) parece ser o mais significante.

2. Os seguintes trabalhos têm sido usados e serão designados como indicado dentro de [ ]: Revelation and Inspiration (New York, 1927) [RI]; maioria dos artigos neste volume foram reimpressos no The Inspiration and Authority of the Bible (London, 1959) [IAB] e serão citados nesta fonte como é mais amplamente disponível; Selected Shorter Writings vol 2 (Phillipsburg, New Jersey, 1980) [SSW]; A. A. Hodge & B. B. Warfield, ‘Inspiration’, The Presbyterian Review 2 (1881) 225-260[I]. Hodge foi responsável pelas págs. 225-238. Estas páginas são se alguma relevância para a visão de Warfield já que ele ficou feliz por elas terem sido editadas sob seu nome. O uso dos volumes de coleções de artigos de Warfield pode facilmente encobrir o fato de que eles foram escritos durante o curso de vários anos. Todas as citações de Warfield neste artigo serão datadas nas notas de rodapé.

3.Todas as passagens relevantes notadas em literatura secundária serão citadas nas notas de rodapé.

4. RI, 429 (1882) (minha ênfase).

5. I, 245 (1881).

6. IAB, 151-153 (1915). Veja também IAB, 317f, 322.

7. Como no número 5, acima. Há muitos outros lugares onde Warfield se refere ao ‘elemento humano’ nas Escrituras (por exemplo SSW, 544, 547).

8. IAB, 150 (1915).

9. SSW, 547 (1894). SSW, 631 são praticamente idênticos. SSW, 543-548 é reescrito para reaparecer como SSW, 628-6631 (1909), com mais envoltório verbal. Há algumas mudanças significativas introduzidas na posterior version-cf nn 21-23, 61f, abaixo.

10. IAB, 173 (1893). Veja também SSW, 544, 547. Sobre as Escrituras como palavras tanto de Deus como de homens, veja também IAB, 421f; SSW, 605-607.

11. Este é o ponto de SSW, 542-548 (1894). Veja também SSW, 630.

12. Das passagens citadas em nn 4-11, as exceções são IAB, 150, 322, 421 f; SSW, 542548, 605-607, 628-631.

13. I, 245 (1881). Há um argumento similar em IAB, 437f.

14. SSW, 542-548 (1894).

15. RI, 131, 147f (1910).

16. SSW, 544f (1894). Em IAB, 421 (1879), ele explicitamente defende a enorme ênfase de Gaussen na autoria divina das Escrituras, precisamente com estas bases.

17. SSW, 544 (1894).

18. IAB, 153f (1915). Veja também IAB, 132f. W. J. Abraham, em seu A Divina Inspiração das Sagradas Escrituras (Oxford etc, 1981) cai precisamente neste erro de fazer a categoria de ‘inspiração’ normativa e então lê-la com ideias extrabíblicas. Ver minha revisão do livro em Themelios 8.1 (Setembro 1982) 32f.

19. IAB, 421 (1879).

20. I, 233 (1881).

21. SSW, 543 (1894).

22. SSW, 543f (1894).

23. SSW, 628-630 (1909).

24. Cf nn 19-23 acima; IAB, 173, 437; SSW, 605-607. Interessante na luz das recentes críticas (por exemplo Abraham, Divine Inspiration, 28f), Warfield defende Louis Gaussen da acusação (IAB, 421f; SSW, 604f).

25. IAB, 133 (1915) (minha ênfase).

26. IAB, 173 (1893).

27. I, 232f (1881), citado em IAB, 173, n 9. E. R. Sandeen, The Roots of Fundamentalism (Chicago & London, 1970) 124f, livra Warfield da acusação de ditado. Mas ele inconsistentemente continua clamando que o controle de Deus das palavras usadas pelos escritores [ou seja, inspiração verbal] implica em ditado. M. Parsons, ‘Warfield and Scripture’, Churchman 91 (1977) 214, corretamente observa que a inspiração verbal não necessariamente implica em inspiração mecânica, da qual ele livra Warfield. H. Krabbendam, ‘B. B. Warfield versus G. C. Berkouwer on Scripture’, in N. L. Geisler (ed), Inerrancy (Grand Rapids, Michigan, 1979) 426f também livra Warfield.

28. SSW, 630 (1909).

29. SSW, 545f (1894).

30. J. Barr, Fundamentalism (London2, 1981) 290-293.

31. Abraham, Divine Inspiration, 34. (Págs. 34-36 lidam com esta questão).

32. Ibid, 35.

33Barr, Fundamentalism, 291, argumenta que ‘fundamentalistas’ rejeitam o ditado porque eles ‘não querem ser dominados por um milagre maior do que eles podem suportar’. Warfield, em SSW, 606f, demonstra que seu clamor é de fato maior que aquele feito por defensores do ditado porque para ele Deus influencia não apenas a caneta mas toda a personalidade dos autores bíblicos.

34. C. Pinnock, The Scripture Principle (San Francisco, 1984) 101.

35. Ibid, 101f.

36. SSW, 611 (1888). Veja também os textos citados em 56, abaixo.

37. SSW, 605 (1888). Nas passagens citadas em nn 37, 38, 48 Warfield está resumindo as visões de outros, mas com aprovação.

38. SSW, 606 (1888).

39. SSW, 547 (1894). Veja também SSW 546-548, 629, 631. J. H. Gerstner, ‘Warfield’s Case for Biblical Inerrancy’,

em J. W. Montgomery (ed), God’s Inerrant Word (Minneapolis, Minnesota, 1974) 133f; Krabbendam, ‘B. B.

Warfield’ 427f; J. B. Rogers & D. M. McKim, The Authority and Interpretation of the Bible (San Francisco,

1979) 336f todos discutem brevemente o conceito de Warfield de concursus.

40. IAB, 154-158 (1915). Toda a passagem poderia quase ser um comentário estendido da declaração de Hodge em 1, 230f.

41. IAB, 154 (1915).

42. IAB, 156 (1915).

43. IAB, 155 (1915).

44. Ibid.

45. Ibid. D. Westblade, ‘Benjamin B. Warfield on Inspiration and Inerrancy’, Studia Biblica et Theologica 10 (1980) 38, distorce Warfield neste ponto. Ele clama que para Warfield as características humanas dos escritores não podem condicionar ou qualificar seus escritos ‘pois do contrário’ nós não teríamos a pura palavra de Deus. O que Warfield rejeita na passagem citada (IAB, 155) é a ideia que as características humanas condicionam e qualificam os escritos de tal forma que nós não tenhamos a pura palavra de Deus. Ele então prossegue mostrando como as características humanas estão lá mas não previnem que o produto final seja tal como Deus o quis (IAB 155f). Isto é bem diferente do que Westblade falou dele.

46. IAB, 156f (1915). Veja também IAB, 85f.

47. IAB, 158 (1915).

48. SSW, 607 (1888). Veja também passagens citadas em 36, 45, acima.

49. SSW, 606 (1888), onde Warfield cita Basíl Manly com sua aprovação (sua ênfase). Veja também I, 226, 231, onde Hodge afirma a espontaneidade dos autores humanos e que eles eram ‘livres e ativos em seu pensamento e na expressão de seus pensamentos’.

50. Rogers & McKim, Authority and Interpretation, 337.

51. IAB, 162 (1915).

52. IAB, 162f (1915). Westblade acertadamente chama a atenção para a analogia cristológica aqui, mas cita erroneamente Warfield, aplicando às palavras das Escrituras o que Warfield aplica a Cristo e não poderia ter usado das Escrituras (‘Warfield’, 38).

53. Rogers & McKim, Authority and Interpretation, 337.

54. I, 227 (1881).

55. I, 228 (1881).

56. IAB, 153, 156, 160; SSW, 546, 611, 615.

57. SSW, 611 (1888).

58. IAB, 160 (1915).

59. SSW, 546 (1894).

60. Pinnock, Scripture Principle, 101f, acertadamente vê uma ligação entre a visão de Warfield da inspiração e a doutrina calvinista da providência. Ele não parece se dar conta que a rejeição do princípio do concursus torna difícil formular qualquer doutrina da providência que possui mais do que uma aparência passageira à doutrina bíblica.

61. SSW, 546-548 (1894).

62. SSW, 631 (1909), tirado de SSW, 547. A ideia do ditado de Deus aos profetas já é encontrado em 1, 229, 231, 235 (1881) (A parte de Hodge).

63. SSW, 615 (1909).

64. SSW, 627 (1909).

65. IAB, 83 (1915).

66. IAB, 86f (1915).

67. IAB, 87 (1915).

68. IAB, 89f (1915).

69. IAB, 91 (1915).

70. IAB, 92 (1915).

71. Ibid.

72. IAB, 93 (1915).

73. IAB, 94 (1915).

74. IAB, 93 (1915).

75. IAB, 95 (1915).

76. Gerstner, ‘Warfield’s Case’, 134, citando Calvin and Calvinism (New York, 1931) 64, de Warfield. Rogers & McKim, Authority and Interpretation, 373, n 95, se refere à mesma passagem, como encontrado em Calvin and Augustine (Philadelphia, 1956) 63f, de Warfield.

77. IAB, 86 (1915).

78.Presbyterian and Reformed Review 5 (1894) 177, citado em Rogers & McKim, Authority and Interpretation, 337. No contexto (pp 176f) Warfield está estabelecendo o ensino de Jo 10:35; Rm 9:17; Gl 3:8, 22.

79. SSW, 611 (1888). Veja também IAB, 420.

80. IAB, 420 (1879).

81. IAB, 422 (1879).

82. IAB, 173 (1893).

83. Rogers & McKim, Authority and Interpretation, 345.

84. IAB, 437f (1879). Veja também 1, 246.

85. I, 233, 238 (1881).

86. I, 238 (1881).

87. I, 246 (1881) (sua ênfase). Westblade, ‘Warfield’, 33f, corretamente nota as qualificações de Hodge e Warfield aqui (que ele chama de ‘uma certa ambiguidade’). Rogers & McKim, Authority and Interpretation, 337 & 373, n 96, se une a Markarian ao citar passagens onde Warfield defende o estido de 2 Pedro. Eu não fui capas de checar as passagens relacionadas, mas é notável que em uma destas o ponto em questão é se o autor era ‘um pseudoepígrafo do tipo de base’.

88. Rogers & McKim, Authority and Interpretation, 342, citando JAB, 189-195 (1893) & IAB, 117 (1894). Veja também Krabbendam, ‘B. B. Warfield’, 430.

89. Rogers & McKim, Authority and Interpretation, 342.

90. Não há discussão da acomodação em ‘Calvin’s Doctrine of the Knowledge of God’ de Warfield, em Calvino e Agostinho, 29-130. Para uma declaração clássica da ideia de Calvino sobre a acomodação, veja F. L. Battles, ‘God was Accommodating Himself to Human Capacity’, Interpretation 31 (1977) 19-38.

91. IAB, 93 (1915).

92. I, 246 (1881), citado em 87, acima.

93. SSW, 548 (1894).

94. I, 246 (1881). A referência de Warfield ao que o autor intencionava não deve ser visto como alinhando-o com a teoria linguística moderna de ‘intenção autoral’.

95. Veja os comentários sobre Abraão, Divine Inspiration em 18, acima. Pinnock, Scripture Principle é por completo um livro muito estimulante e que ajuda muito, mas ele sofre do defeito que o autor sente ser necessário recuar da ideia de ‘o que as Escrituras dizem, Deus diz’ para protegar a humanidade das Escrituras. O problema básico é que ele não pode aceitar completamente o princípio de concursus (veja 60, acima). 1. H. Marshall, Biblical Inspiration (London 1982) é um bom exemplo de um livro escrito por um eminente erudito bíblico evangélico que trabalha com o conceito de concursus (especialmente págs. 40-44). Como o autore é bem conhecido por sua posição arminiana, isto mostra que não é necessário ser calvinista para defender o concursus.

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