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Os aniquilacionistas sobre a parábola do rico e de Lázaro

Escrito por  Gustavo
O rico e Lázaro

Recentemente um pastor que se intitula mortalista dedicou algum tempo para a defesa do aniquilacionismo em um de nossos artigos1. Quem debateu com um “mortalista” sabe que é natural que se faça referência à bem conhecida parábola do rico e de Lázaro nestas discussões. Talvez isto explique por que ao se fazer menção ao texto, uma resposta padronizada foi dada, que não levava em consideração os motivos para a menção e como a menção foi feita. Um dos pontos desta resposta que nos chama a atenção:


Sobre a parábola do rico e de Lázaro é um desespero muito grande na ânsia de defender um conceito falido e insustentável querer dizer que se trata de uma história real! Os fatos incidentais da parábola por si só mostra que se trata de uma parábola. E é regra em boa teologia que doutrinas não se fundamentam sobre parábolas! Jesus pega uma estória, constante inclusive do Midrash Rabbah, e inverte o final colocando o rico no Hades e o mendigo no céu, confrontando com isso a expectativa geral dos judeus helenizados.

Há muitos defensores da imortalidade da alma que defendem que este texto representa uma história real. Por isto a primeira parte desta resposta foi estabelecer que o texto se trata de uma parábola (erroneamente alegando que defendi a historicidade da parábola), para depois fazer a observação mais curiosa desta resposta: “é regra em boa teologia que doutrinas não se fundamentam sobre parábolas”.

Afinal de contas, quais pessoas defendem esta regra hermenêutica? Se parábolas não servem para fundamentar doutrinas, por que Jesus as empregava? Devemos tratar as parábolas como a igreja antiga tratava os escritos eclesiásticos (bom para leitura da igreja, mas não para fundamentar doutrinas)?

O objetivo deste texto, portanto, é responder estas questões e determinar qual o valor da parábola do rico e de Lázaro para a doutrina da imortalidade da alma.

Qual a relação entre as parábolas e as doutrinas?

É curioso como a regra sobre parábolas nunca é fundamentada por nenhuma referência. Geralmente o máximo que se fornece é uma vaga referência sobre “os melhores livros de hermenêutica”. A fim de esclarecer esta declaração, portanto, foi-se atrás de livros de referência no idioma português.

O livro Hermenêutica Avançada, de Henry Virkley, por exemplo, nos diz o seguinte sobre a relação das parábolas com as doutrinas:

Há outro aspecto importante da análise teológica na interpretação das parábolas. As parábolas podem servir ao importante propósito de fixar doutrina em nossa memória de um modo particularmente admirável. Contudo, os expositores ortodoxos unanimemente concordam em que nenhuma doutrina deve basear-se numa parábola como sua primária ou única fonte. A base lógica deste princípio é que passagens mais claras das Escrituras são sempre usadas para esclarecer passagens mais obscuras, e nunca vice-versa. As parábolas são, por natureza, mais obscuras do que as passagens doutrinais. Por conseguinte, a doutrina deveria desenvolver-se a partir de passagens bíblicas em prosa clara, e as parábolas devem ser empregadas para ampliar ou acentuar essa doutrina2.

Assim, como nos explica Henry Virkley, uma doutrina não pode ser fundamentada unicamente em parábolas. A questão aqui não é que elas não servem de forma alguma para fundamentá-las, mas sim que elas não podem ser a única fonte para estas doutrinas. O mesmo nos diz Grant R. Osborne em seu A Espiral Hermenêutica, que usa esta mesma parábola para indicar o que não pode ser transformado em doutrina:

6. Não fundamente doutrinas com base em parábolas sem conferir detalhes comprobatórios em outro lugar. Algo que está estreitamente relacionado com o item 5 acima. Contudo, em função do mau uso difundido das parábolas justamente nesta área, trago a questão aqui como um ponto separado. Por exemplo, a parábola do homem rico e Lázaro (Lc 16.19-31) é tomada muitas vezes como prova de um inferno compartimentado. Porém, semelhante tipo de doutrina não se encontra no ensino de Jesus em Lucas, e, na verdade, em nenhuma outra parte das Escrituras. Logo, a ambientação no inferno é algo específico da parábola, e não dogma, e isso não deve ser forçado no texto em demasia3.

Novamente vemos aqui que a parábola serve sim como base para uma doutrina, desde que ela não seja a única base. E é aqui que uma má representação dos defensores da imortalidade da alma é feita. Afinal de contas, eles não empregam apenas este texto como base para sua doutrina. Os “mortalistas” podem até discordar da interpretação de outros pontos (Fp 1:12-24, por exemplo), mas não poderão dizer que quem defende a imortalidade da alma, faz isto apenas com base na parábola do rico e de Lázaro. Certamente as palavras de Bernard Ramm deveriam ser ouvidas por eles:

Parábolas ensinam doutrinas e o clamor de que elas não podem ser usadas de todo em escritos doutrinários é impróprio. Mas ao colher nossas doutrinas das parábolas, devemos ser rígidos em nossa interpretação, nós devemos checar nossos resultados com o resto do Novo Testamento. Parábolas com cautela apropriada podem ser usadas para ilustrar doutrinas, iluminar experiência cristã e ensinar lições práticas4.

Todo texto bíblico deve ser interpretado à luz de outros textos, isto não se limita apenas às parábolas. Algumas formas que os “mortalistas” encontram para explicar a ressurreição, no entanto, não encontram amparo algum nas Escrituras:

É meu caráter ou personalidade que desenvolvemos nesta vida que Deus preserva em Sua memória e reunirá à pessoa ressuscitada. Não há dois caracteres iguais porque não há duas pessoas que enfrentem as mesma tentações, lutas, derrotas, desapontamentos, vitórias e crescimento em sua vida cristã. Isso elimina a possibilidade de “duplicação” de pessoas por ocasião da ressurreição, todos se parecendo, agindo e pensando igual. Cada um de nós tem um caráter ou personalidade único que Deus preserva e unirá ao corpo ressuscitado. Isso explica a importância de desenvolver um caráter cristão nesta vida presente, porque essa será nossa identidade pessoal no mundo por vir5.

Qual texto dá suporte ao entendimento que Deus preservará nossa personalidade em Sua memória, e é a partir desta personalidade que Deus irá nos ressuscitar? O texto de origem do trecho acima não fornece bases bíblicas para este ensino. Por outro lado, até a doutrina do sono da alma se baseia em uma metáfora.

Mas agora, voltemos à parábola do rico e de Lázaro. Afinal ela tem algum valor para a defesa da imortalidade da alma?

Sobre a parábola do rico e de Lázaro

A análise do contexto é vital em qualquer interpretação de textos bíblicos. Isto vale para as parábolas também, como esclarece Grant R. Osborne:

1. Observe o cenário no qual a parábola se situa. Blomberg aponta para um dado de que “as parábolas são autênticas nas formas e contextos nos quais elas aparecem” e que não há necessidade de “confrontar o significado original de Jesus com o uso que os evangelistas fazem das parábolas em algum cenário novo” (2004:23). Essas condições incluem tanto o contexto imediato (a dimensão literária) quanto o público para o qual a parábola é destinada (a dimensão histórica). O grupo específico ao qual Cristo se dirigiu altera, de modo significativo, a ideia central da parábola. O problema que Cristo enfrentava quando proferiu a parábola, e a discussão que se seguiu, também são fatores contextuais importantes6.

Assim, o problema que Cristo enfrentava além da audiência são importantes para definir o significado da parábola. Por isto, vamos buscar estes dois pontos em nossa análise.

Jesus acabara de relatar a parábola do homem rico e do mordomo infiel. Era uma parábola sobre o uso das riquezas deste mundo, que acabaria com esta lição:

Eu vos digo ainda: Granjeai amigos por meio das riquezas da injustiça; para que, quando estas vos faltarem, vos recebam eles nos tabernáculos eternos. Quem é fiel no pouco, também é fiel no muito; quem é injusto no pouco, também é injusto no muito. Se, pois, nas riquezas injustas não fostes fiéis, quem vos confiará as verdadeiras? E se no alheio não fostes fiéis, quem vos dará o que é vosso? Nenhum servo pode servir dois senhores; porque ou há de odiar a um e amar ao outro, o há de odiar a um e amar ao outro, o há de dedicar-se a um e desprezar o outro. Não podeis servir a Deus e às riquezas. – Lucas 16:9-13

Estas palavras teriam despertado a atenção dos fariseus, conforme registra Lucas:

(Lc 16:14) Os fariseus, que eram gananciosos, ouviam todas essas coisas e zombavam dele.

Lucas aponta a ganância (φιλάργυρος, literalmente amor à prata) dos fariseus como motivo para a zombaria. Talvez por serem avarentos e recusar o ensino de Jesus sobre a riqueza é que fizeram isto, mas há também a possibilidade deles estarem refletindo a ideia comum na época de que a riqueza é sinal de favor divino. Tal ideia também poderia ser o pano de fundo para a surpresa dos discípulos em outra ocasião:

E Jesus, vendo-o assim, disse: Quão dificilmente entrarão no reino de Deus os que têm riquezas! Pois é mais fácil um camelo passar pelo fundo duma agulha, do que entrar um rico no reino de Deus. Então os que ouviram isso disseram: Quem pode, então, ser salvo? – Lucas 18:24-26

Assim, quando Jesus diz que não se pode servir a Deus e às riquezas, Ele estaria atacando esta ideia, e a reação dos fariseus foi de zombaria. Mas riquezas não indicam nada, muito menos favor divino. Riquezas podem até convencer homens de alguma coisa, mas não convencem a Deus:

(Lc 16:15) E ele lhes disse: Vós sois os que vos justificais a vós mesmos diante dos homens, mas Deus conhece os vossos corações; porque o que entre os homens é elevado, perante Deus é abominação.

Assim, Jesus os condena pelos atos que praticam e dá início à parábola do rico e do Lázaro. E embora a parábola empregue vários elementos que não podem ser considerados literais, há pontos que não podem ser descartados, como enumera F. F. Bruce:

Certas verdades concernentes à vida por vir são, no entanto, destacadas inescapavelmente na parábola. Em primeiro lugar, está o caráter final e decisivo da morte como destino humano; o estado da alma individual depois da morte é determinado irrevogavelmente durante esta vida. Em segundo lugar, seja o que estiver representado na linguagem simbólica, a parábola ensina claramente que o destino dos justos é a infinita felicidade, e o dos ímpios a aflição indescritível. Tanto a felicidade quanto a aflição são conscientes, e, além disso, a memória desta vida com suas oportunidades perdidas subsiste no além. Em terceiro lugar, além da insistência na realidade das diversas condições após a morte, há uma insistência equivalente na verdade de que para todos os homens há orientações suficientes do caminho para o céu nas Escrituras7.

Todos estes pontos são importantes para estabelecer o ensino da parábola. A declaração final da parábola diz: “Se não ouvem a Moisés e aos profetas, tampouco acreditarão, ainda que ressuscite alguém dentre os mortos”. Os “mortalistas” defendem que na morte somos inconscientes. Neste caso, um morto não poderia dar testemunho, já que não se lembraria de nada para testemunhar. Assim a declaração final perderia seu peso.

Acima de tudo, temos que observar que a parábola era uma resposta a um problema. Os gananciosos fariseus viam nas riquezas uma forma de indicar o favor divino. Jesus, no entanto, mostra um rico em sua parábola, sendo objeto de condenação divina. Se a cena de sofrimento do rico não representasse que ele estava condenado, pelo menos para os fariseus, que significado esta repreensão teria para eles? Se todos ali criam que a verdadeira condenação divina era o aniquilamento, porque não se empregou este? Isto nos mostra que a doutrina da imortalidade da alma foi pano de fundo para a parábola. Uma parábola para explicar a dureza do coração daqueles fariseus.

Notas

1. O comentário foi feito em João Calvino e a imortalidade da alma, no site antigo.

2. Henry Vinkler, Hermenêutica Avançada, Ed. Vida, pág. 131.

3. Grant R. Osborne, A Espiral Hermenêutica, Ed. Vida Nova, pág. 392.

4. Bernard Ramm, Protestant Biblical Interpretation, Baker Book House, pág. 285.

5. Conforme citado em http://www.c-224.com/2-DDD-2.html

6. Grant R. Osborne, A Espiral Hermenêutica, Ed. Vida Nova, pág. 387.

7. F. F. Bruce, Comentário bíblico NVI, Ed. Vida, pág. 1160.

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