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Páscoa no cristianismo primitivo

Escrito por  Dicionário Patrístico e de Antiguidades Cristãs
Páscoa

I. O Conteúdo teológico da festa. R. Cantalamessa mostrou como é necessário distinguir, na tradição cristã, duas concepções da Páscoa, que se originam ambas do judaísmo.

1. A tradição judaica. No início, a Páscoa é uma festa nômade (provavelmente em relação com a transumância); o rito do sangue do cordeiro aspergido na arquitrave e nos umbrais da porta tem um significado de esconjuro: deve proteger contra o Exterminador. Na religião israelita, aquele que “passa” é Deus, que poupa as casas de seu povo (Ex 12,27). A esta primeira concepção acrescentou-se uma segunda: a Páscoa foi posta em relação com a lembrança do êxodo do Egito, que recorda aos israelitas a libertação do homem de sua escravidão (Ex 13,8.14; Dt 16,1). No judaísmo helenista (cf., por ex., Fíl., Leg. spec. II, 147), e no posterior à destruição do segundo Templo, esta concepção antropológica da festa prevaleceu sobre a primitiva.

2. A tradição cristã. Jesus morreu por ocasião de uma Páscoa judaica (quer se trate de 14 de Nisan, segundo a cronologia de S. João, quer de 15 de Nisan, segundo a cronologia dos sinóticos). Esta coincidência não podia deixar de influir sobre a tradição cristã. Assiste-se a uma progressiva “pascalização do acontecimento da Sexta-feira Santa, com base na interpretação tipológica do AT. Característico é o fato de que, desde as origens, as duas concepções judaicas sobre a Páscoa estejam presentes na tradição cristã (cf. 1Cor 5,7-8). Todavia, podem-se distinguir dois tipos de teologia pascal:

a) no tipo asiático, a Páscoa é posta em relação com πασχειν/passio e recebe uma significação quase exclusivamente cristológica (o conteúdo da festa é a comemoração do passado e a férvida expectativa dos acontecimentos escatológicos). É esta Páscoa quartodecimana que se reflete, entre outras, na homília Sobre a Páscoa de Melitão de Sardes. Notemos, no entanto, que a Páscoa romana não se diferencia da festa asiática por seu conteúdo, mas apenas pela data (a origem da Páscoa romana poderia aliás remontar, também ela, à Igreja primitiva).

b) no tipo alexandrino, a Páscoa é posta em relação com a ideia de transitus-passagem, e assume uma significação quase exclusivamente antropológica (passou-se da sombra à realidade, vive-se no presente, antecipando a verdade escatológica e celeste; a tendência à “desistorização” da festa é aqui bem clara). É esta a teologia de um Clemente, de um Orígenes, que se confundirá com a tradição asiática na patrística grega posterior.

c) na patrística latina, que se baseia sobretudo na tradição asiática, a tradição alexandrina se introduz a partir de Ambrósio (De sacr. I, 4, 12; De Cain et Abel I, 8, 31; Ep. 1,10) e de Jerônimo (Comm. In Evang. Matth. IV, 26,2). Será mérito de Agostinho operar uma nova síntese cristológica das duas tradições, com base em Jo 13,1 (Tract. in Evang. Ioh. 55,1). “Foi com sua paixão que o Senhor 'passou' da morte para a vida e abriu para nós, crentes, a via para sua ressurreição, a fim de que nós passemos da morte à vida” (Enarr. in Psalm. 120,6; cf. De civ. Dei XVI, 43). Esta síntese lhe permite – e permitirá a seus sucessores – combinar o aspecto histórico, sacramental, místico e escatológico da festa da Páscoa.

II. A celebração da festa. Sobre as origens (que aliás são difíceis de ser esclarecidas) e sobre as diferentes formas da celebração da Páscoa nos primeiros séculos, veja-se o artigo sobre a controvérsia da Páscoa (infra III). No séc. IV, a organização e a celebração do ciclo pascal começam a uniformizar-se nas diversas regiões eclesiásticas.

1. A data. O I concílio ecumênico de Nicéia (325) impõe a todas as igrejas festejar a Páscoa de acordo com os romanos e os alexandrinos, isto é, no primeiro domingo depois da primeira lua cheia que segue o equinócio da primavera; os bispos de Alexandria enviam cada ano uma carta encíclica às outras igrejas para anunciar-lhes a data da Páscoa. Mas diferenças de calendário entre o Ocidente e Oriente fazem com que esta vontade de festejar a Páscoa em toda a parte no mesmo dia fique sendo um belo sonho, até nossos dias (cf. as recentes consultas ecumênicas com a finalidade de se fixar o dia de Páscoa no domingo que segue o segundo sábado do mês de abril).

2. A liturgia. A quaresma é mencionada, pela primeira vez, em 334, por Atanásio (Ep. fest. 6,13; cf. 13,8); depois por Egéria (Itin. 27-29).

a) A Semana Santa parece ser uma instituição surgida da devoção dos primeiros peregrinos cristãos, que iam à Terra Santa para viverem no próprio lugar dos diversos momentos da paixão de Cristo. A primeira narração detalhada desta semana foi conservada no itinerarium Egeriae, do fim do séc. IV (30-38). São estes os dados: no Domingo de Ramos vai-se ao Monte das Oliveiras e se desce para a cidade em procissão, com ramos de oliveira e de palmeira nas mãos (cf. Mc 11,1-10 e par.; Jo 12,1.12-19); ao que parece, no mesmo dia, realizava-se a redditio symboli (46) pelos catecúmenos, como no Ocidente. Na terça-feira faz-se a leitura do sermão escatológico dos evangelhos (Mc 13,5-57 e par.) no Monte das Oliveiras; na quarta-feira, lê-se a narrativa da traição de Judas (Mc 14,10-11 e par.) no Santo Sepulcro.

b) O Tríduo pascal realmente começa na quinta-feira à tarde. Em Jerusalém, passa-se a noite de quinta para sexta em vigília no Monte das Oliveiras e no Getsêmani (Mc 14,32-52 e par.); na Síria, durante esta vigília, comemora-se a instituição da eucaristia (cf. Afraates, Demonstr. 12). Na Sexta--feira Santa – sempre de acordo com a narração de Egéria – reevoca-se, de manhã cedo, Jesus que comparece diante de Pilatos (Mc 15,2-15 e par.) e a flagelação (Mc 15,16-20 e par.) Ao meio-dia, mostra-se o lenho da cruz encontrado por Helena, e se faz depois leitura da narração da Paixão, acompanhada pelas profecias do AT, durante três horas. Alguns fiéis fazem vigília também na noite da sexta-feira para o sábado. O dia do Sábado Santo não tem ofício especial; em todas as igrejas jejua-se, em lembrança da “ausência do esposo” (Mc 2,20 e par.) e do “repouso” de Cristo (Const. Apost. VII, 23,4; VIII, 47,67), mas recorda-se também sua descida aos infernos que, para a tradição bizantina, se tornará o primeiro sinal de sua vitória sobre o reino da morte (cf. Anfil. De Icônio, Or. in diem sabbati s. 1). A vigília pascal na noite do sábado para o domingo é o ponto culminante da festa: “a mãe de todas as santas vigílias, durante a qual o mundo inteiro está a vigilar” (Agost., Serm. 219). A realização da vigília deita suas raízes na tradição da celebração pascal primitiva, como se reflete ainda na Didascália siríaca do séc. III: “Permanecei unidos num mesmo lugar, perseverando na vigília durante a noite inteira, fazendo súplicas e orações, lendo os Profetas, o Evangelho e os Salmos, com temor e tremor, numa súplica fervorosa, até a terceira hora da noite que segue o sábado, e então comei, entregai-vos à alegria, regozijai-vos, exultai, porque Cristo, penhor de nossa ressurreição, ressuscitou” (V, 19). No séc. IV (e provavelmente já na Tradição Apostólica do séc. III; cf. Tertul., De bapt. 19,1), a vigília pascal é também o momento solene do batismo; as homílias catequéticas tanto ocidentais como orientais nos descrevem com minúcias os ritos e os símbolos batismais. Com o declínio do catecumenato da Igreja antiga (pela generalização do batismo das crianças), a vigília pascal perderá importância, junto também com todo o Tríduo pascal; afortunadamente, está-se redescobrindo esta “mãe das vigílias” em todas as igrejas.

c) Oitava de Páscoa. Nos oito dias que se seguiam à Páscoa, dá-se aos novos batizados a instrução mistagógica sobre os sacramentos recém-recebidos, isto é, o batismo, a unção e a eucaristia, como também uma explicação do Pai-nosso. No Domingo in albis ou Quasimodo geniti, que assinala o fim da oitava, os catecúmenos trazem pela última vez suas vestes brancas.

Pentecostes: Os 50 dias que separam a Páscoa de Pentecostes formam o tempo pascal, qui est proprie dies festus (Tertul., De bapt. 19,2). É ainda a partir do séc. IV que a festa da Ascensão, no 40o dia depois da Páscoa, é atestada (Itin. Egeriae 42).

Dicionario Patrístico e de Antiguidades Cristãs"Dicionário Patrístico e de Antiguidades Cristãs", Ed. Vozes e Ed. Paulinas, 2002, pp. 1096-1097.

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