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A controvérsia Pascal

Escrito por  Eusébio de Cesareia
Éfeso

Capítulo XXIII – A discussão então levantada a respeito da Páscoa.

Surgiu, nessa época, considerável discussão em consequência de uma diferença de opinião a respeito da observância do período de páscoa. As igrejas de toda a Ásia, dirigidas por uma tradição remota, supunham que deviam guardar o décimo quarto dia da lua para a festa da páscoa do Salvador, em cujo dia os judeus tinham ordens de matar o cordeiro pascal; e eles eram incumbidos, todas as vezes, de encerrar o jejum naquele dia, qualquer que fosse o dia da semana em que recaísse. Mas não era costume celebrá-la dessa maneira nas igrejas do restante do mundo, que observam a prática que subsistiu pela tradição apostólica até o presente, de modo que não seria próprio encerrar nosso jejum em nenhum outro dia, senão no dia da ressurreição de nosso Salvador. Assim, houve sínodos e convocações dos bispos em torno dessa questão; e todos unanimemente formularam um decreto eclesiástico que comunicaram a todas as igrejas em todos os lugares: que o mistério da ressurreição de nosso Senhor não devia ser celebrado em nenhum outro dia, senão no Dia do Senhor e que somente nesse dia devíamos observar o encerramento dos jejuns pascais. Ainda hoje existe uma epístola dos que se reuniram naquela ocasião; entre os quais presidia Teófilo, bispo da igreja de Cesaréia, e Narciso, bispo de Jerusalém. Subsiste ainda outra epístola acerca da mesma questão, a qual leva o nome de Vítor. Também uma epístola dos bispos de Ponto, entre os quais presidia Palmas, por ser mais velho; também das igrejas da Gália, sobre as quais presidia Irineu. Além disso, uma dos de Osroene e das cidades dali. E em especial uma epístola da parte de Baquilo, bispo dos coríntios, e epístolas de muitos outros que, apresentando a mesma única doutrina também expressam o mesmo voto. E isto, a determinação unânime deles, foi aquela já mencionada.

Capítulo XXIV – A dissensão das igrejas na Ásia

Os bispos, porém, da Ásia, perseverando na observância do costume transmitido a eles por seus pais, eram liderados por Polícrates. Este, de fato, havia estabelecido a tradição transmitida a eles numa carta dirigida a Vítor e à igreja de Roma. “Nós”, dizia ele, “assim, observamos o dia genuíno, sem pôr nem tirar. Pois na Ásia grandes luzes já dormem, as quais ressuscitarão no dia da manifestação do Senhor, em que Ele virá do céu com glória e levantará todos os santos; Filipe, um dos doze apóstolos, que dorme em Hierápolis, e suas filhas virgens idosas. Sua outra filha, também, tendo vivido sob a influência do Santo Espírito, agora igualmente repousa em Éfeso. Além disso, João, que descansou no seio de nosso Senhor; que também era sacerdote, vestindo a placa sacerdotal (petalon), mártir e também mestre. Ele está sepultado em Éfeso; também Policarpo de Esmirna, ambos bispos e mártires. Também Traséias, bispo e mártir de Eumênia, sepultado em Esmirna. Por que eu mencionaria Sagaris, bispo e mártir, que repousa em Laodicéia, além dele, o bendito Papírio e Melito, o eunuco, cujo andar e conversão foram totalmente influenciados pelo Espírito Santo, que agora descansa em Sardes, aguardando o episcopado do céu, quando se levantará dos mortos? Todos eles observaram o décimo quarto dia da páscoa de acordo com o evangelho, não se desviando em nada, antes, seguindo a regra de fé. Além disso, eu, Polícrates, o menor de vós todos, de acordo com a tradição de meus parentes, alguns dos quais segui. Pois houve sete bispos parentes meus, sendo eu o oitavo; e meus parentes sempre observaram o dia em que o povo (isto é, os judeus) lançavam fora o fermento. Eu, portanto, irmãos, vivo agora há sessenta e cinco anos no Senhor e, tendo estudado todas as Escrituras Sagradas não me alarmo com essas coisas com que sou ameaçado para me intimidar. Pois os que são maiores que eu disseram: 'devemos obedecer a Deus e não a homens'”.

Depois disso, Polícrates também passa a escrever a respeito de todos os bispos que estavam presentes e pensavam como ele: “Eu poderia também mencionar”, diz ele, “os bispos que estavam presentes, a quem solicitastes que eu reunisse e a quem reuni. Seus nomes, caso os escrevesse, somariam grande número. Esses, portanto, vendo meu corpo delgado, concordaram com a epístola, bem sabendo que meus cabelos brancos não o são em vão, mas que em todo o tempo regulei minha vida no Senhor Jesus”.

Com isso Vítor, o bispo da igreja de Roma, logo se empenhou em desligar da unidade comum as igrejas de toda a Ásia, juntamente com as igrejas adjacentes, considerando-as heterodoxas. E ele publica anunciando por meio de cartas e proclama que todos os irmãos de lá estão totalmente excomungados. Mas essa não foi a opinião de todos os bispos. Eles o exortaram de imediato, pelo contrário, para considerar aquele curso calculado para promover a paz, a unidade e o amor mútuo.

Também restam as expressões que empregaram para pressionar com grande severidade a Vítor. Entre eles também estava Irineu que, em nome dos irmãos da Gália, sobre os quais presidia, escreveu uma epístola em que defende a obrigação de celebrar o mistério da ressurreição de nosso Senhor apenas no dia do Senhor. Ele também admoesta convenientemente Vítor a não cortar igrejas inteiras de Deus que observassem a tradição de um costume antigo. Depois de muitos outros assuntos apresentados por ele, Irineu também acrescenta o seguinte: “Pois a disputa não só gira em torno do dia, mas também em torno da maneira de jejuar. Pois alguns pensam que devem jejuar apenas um dia, alguns dois, alguns mais dias; alguns calculam um dia que consiste em quarenta horas, dia e noite; e essa diversidade que existe entre os que o observam não é só uma questão que acabou de surgir em nossos dias, mas há muito, entre os que viveram antes de nós, que, talvez, não tendo regulado com rigidez suficiente, estabeleceram a prática que nasceu de sua simplicidade e inexperiência. E ainda assim, com todos eles mantiveram paz e mantemos paz uns com os outros; e a própria diferença em nosso jejum estabelece a unidade em nossa fé”.

A isso Irineu também acrescenta uma narrativa que posso aqui inserir com proveito. A narrativa é a seguinte: “E aqueles presbíteros que governaram a igreja antes de Sotero e sobre a qual presidis agora, digo Aniceto e Pio, Higino com Telésforo e Xisto, também não o observaram e não permitiram que seus seguidores o observasse. Ainda assim, ainda que eles mesmo não o observassem, nem por isso tiveram menos paz com os das igrejas em que aquilo era observado, sempre que vinham a eles; ainda que guardá-lo, então, fosse mais uma oposição aos que não o guardavam. E também em tempo algum desligaram alguém só por causa da forma. Mas os próprios presbíteros diante de vós, que não o observavam, enviaram a eucaristia àqueles das igrejas que o observavam. E quando o bendito Policarpo foi à Roma, nos dias de Aniceto, e tiveram pequena desavença entre eles igualmente a respeito de outras questões, reconciliaram-se de imediato, sem discutir muito um com o outro nesse assunto. Pois nem Aniceto conseguiu persuadir Policarpo a não observá-lo, porque ele sempre o observara com o apóstolo João e o restante dos apóstolos com quem se associara; nem Policarpo persuadiu Aniceto a observá-lo, pois este dizia que era obrigado a manter a prática dos presbíteros anteriores a ele. Sendo assim, eles comungaram um com o outro e, na igreja, Aniceto cedeu a Policarpo, sem dúvida por respeito, o ofício de consagrar; e se separaram em paz, ficando toda a igreja em paz; tanto os que observavam como os que não, mantendo a paz”.

E esse mesmo Irineu, como alguém cujo caráter condiz bem com o nome, sendo desse modo promotor da paz, exortou e negociou questões tais como essa pela paz das igrejas. E não apenas a Vítor mas igualmente à maior parte dos outros bispos das igrejas, enviou cartas de exortação sobre questões controvertidas.

Capítulo XXV – Todos concordam com uma opinião acerca da Páscoa

Os bispos, de fato, da Palestina, a quem acabamos de mencionar, Narciso e Teófilo, e Cássio com eles, o bispo da igreja de Tiro, e Claro de Ptolemaida, e os que se juntaram a eles, tendo discutido muitos pontos a respeito da tradição que lhes fora legada pelos apóstolos, empregaram as seguintes palavras em relação à páscoa, no final da epístola: “Procurai enviar cópias da epístola a toda a Igreja, para não darmos ocasião às mentes facilmente desviáveis. Mas também vos informamos que em Alexandria observam o mesmo dia que nós, de modo que celebramos o período santo de coração unânime e na mesma ocasião”.

História EclesiásticaHistória Eclesiástica, Eusébio de Cesaréia, Editora CPAD 1999, Livro 5, Capítulos 23-25, págs. 191-195.

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