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O sarcasmo de Irineu

Escrito por  Gustavo
O Pleroma de Irineu

Teologia é algo muito chato, certo? Errado! Afinal de contas, na tarefa de refutar heresias que ameaçavam Igreja, até o bom e velho sarcasmo às vezes serve como recurso apologético. Brian LePort no blog Near Emmaus nos fez a gentileza de compartilhar dois textos de Irineu de Lião onde ele usa um pouco deste sarcasmo para refutar os gnósticos.

No primeiro texto, temos a ilustração do retrato do rei...


Esta é, portanto, a teoria deles, que nem os profetas pregaram, nem o Senhor ensinou, nem os apóstolos transmitiram e pela qual se gloriam de ter conhecimentos melhores e mais abundantes do que os outros. Leem coisas que não foram escritas e, como se costuma dizer, trançando cordas com areia, procuram acrescentar às suas palavras outras dignas de fé, como as parábolas do Senhor ou os oráculos dos profetas ou as palavras dos apóstolos, para que as suas fantasias não se apresentem sem fundamento. Descuidam a ordem e o texto das Escrituras e enquanto lhes é possível dissolvem os membros da verdade. Transferem, transformam e fazendo de uma coisa outra, seduzem a muitos com as palavras do Senhor atribuídas indevidamente a fantasias inventadas. É como se a um autêntico retrato do rei, realizado cuidadosamente em rico mosaico por hábil artista, alguém desmanchasse a figura de homem e fizesse com as pedras deslocadas e mal dispostas a figura de cão ou de raposa e depois dissesse e confirmasse que aquela era a autêntica imagem do rei feita pelo hábil artista. Mostrando aquelas mesmas pedras que, bem dispostas pelo primeiro artista apresentavam a imagem do rei e mal dispostas pelo segundo artista transformavam-na em figura de cão, pelo brilho das pedras enganam os simples que não conhecem o aspecto do rei e os convencem que a ridícula imagem da raposa é o autêntico retrato do rei. Assim, costurando fábulas de velhinhas e tomando daqui e dali palavras, sentenças e parábolas, procuram adaptar as palavras de Deus às suas fábulas. Já falamos do que aplicam aos que estão dentro do Pleroma1.

Imaginem então a cena: uma pessoa aponta para o retrato de um cão e chama aquele de “retrato do rei”. Este era o gnóstico, que gostava de criar mosaicos das Escrituras.

No entanto o texto mais criativo (e divertido) é aquele onde Irineu cria seu próprio Pleroma, no melhor estilo gnóstico:

Ha! he! ah! ah! Valem estas exclamações trágicas diante desta audácia em inventar nomes e aplicá-los despudoradamente a esta mentirosa invenção. Com efeito, quando diz: Existe antes de todas as coisas um Pró-princípio pró-ininteligível que chamo Unicidade e com ele está uma Potência que chamo Unidade, mostra claramente que são ficção todas as palavras que pronunciou e que deu a estas ficções nomes que ninguém antes dele lhes deu. Se não tivesse esta ousadia, segundo ele, ainda hoje a verdade estaria sem nome. Por isso, nada impede que outro qualquer, ao tratar deste assunto, use estes nomes: Existe certo Pró-princípio soberano pró-esvaziado-de-inteligibilidade, pró-esvaziado-de-substância e Potência pró-pró-dotada-de-esfericidade, que chamo Abóbora. Junto com esta Abóbora coexiste uma Potência que chamo Super-vacuidade. A Abóbora e a Super-Vacuidade, sendo um só, emitiram sem emitir um Fruto visível de qualquer lugar, comestível e saboroso, ao qual dou o nome de Pepino. Junto com este Pepino existe uma Potência da mesma substância, que chamo Melão. Estas Potências, isto é, Abóbora e Super-vacuidade, Pepino e Melão emitiram a multidão restante dos Melões delirantes de Valentim. Com efeito, se é necessário ajustar a fala comum à primeira Tétrada e se cada um escolhe os nomes que quer, o que impede usar estes nomes muito mais inteligíveis e conhecidos de todos?2

Não bastasse o Pleroma vegetal de Irineu, no próximo parágrafo, comentando novamente o Pleroma de outros gnósticos, ele diz:

Eles dizem isso para se mostrarem mais perfeitos do que os perfeitos e mais gnósticos do que os gnósticos. E alguém justamente poderia dizer isso a eles: “Pobres Melões, sofistas desprezíveis que sequer homens são!”.

Lendo estes trechos, percebe-se que a teologia devia ser chata pelo menos para os gnósticos, que tiveram que enfrentar Irineu...

Notas

1. Ireneu de Lião, Contra Heresias, livro 1, capítulo 8, parágrafo 1, Coleção patrística, Volume 4, editora Paulus.

2. Ireneu de Lião, Contra Heresias, livro 1, capítulo 11, parágrafo 4, Coleção patrística, Volume 4, editora Paulus.

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