Imprimir esta página

Lutero prega sobre o inferno e a danação eterna dos ímpios

Escrito por  Martinho Lutero
Lutero lutando contra o demônio

Entre 11 de agosto de 1532 e 27 de abril de 1533, Lutero proferiu, em Wittenberg, uma série de 17 pregações sobre o capítulo 15 da 1ª Carta de Paulo aos Coríntios. Jorge Rörer, que havia sido ordenado diácono pelo próprio Lutero em 1525, tinha também como uma de suas atribuições fazer anotações taquigráficas das prédicas de Lutero, compilando-as e - depois - Gaspar Cruciger deu-lhes o trato editorial e as publicou em 1533. A obra ocupa 140 páginas do vol. 9 das Obras Selecionadas de Martinho Lutero, publicado pela Ed. Sinodal em 2005, e se concentra mais no destino dos salvos e remidos por Jesus Cristo, mas dele destacamos os seguintes trechos em que o Reformador fala mais detidamente sobre inferno e imortalidade da alma no que diz respeito aos perdidos:


Pois, se os mortos não ressuscitam, também Cristo não ressuscitou. Mas, se Cristo não ressuscitou, a vossa fé é vã, vós ainda estais em vossos pecados e aqueles que adormeceram em Cristo estão perdidos. Se depositamos nossa esperança em Cristo apenas nessa vida, somos as mais miseráveis de todas as pessoas. [15.16-19]

[...]

Em sexto e último lugar, ele conclui: “Se depositamos nossa esperança em Cristo, apenas nesta vida, somos as mais miseráveis de todas as pessoas sobre a terra” [1 Co 15.19]. Isso equivale a dizer: se isso fosse verdade, que depois dessa vida não se seguiria outra, eu daria de ombros para o Batismo, o púlpito e toda a cristandade. Pois repara bem um cristão e compara-o com outras pessoas que não creem, vivem na gandaia, têm e fazem o que querem e, quando chegam ao fim da vida, diz Jó [4.21], descem num instante e nem se dão conta, jamais experimentam o que é verdadeiro sofrimento ou tristeza, aflição ou amargura. Em comparação com esses, nós, que querermos ser cristãos, temos que passar por toda sorte de tormento e infortúnio; [as pessoas] nos desprezam, repudiam-nos, caluniam-nos e nos xingam, hostilizam-nos e acham que não temos o direito de viver sobre a terra; temos que esperar, diariamente, o pior, como o diabo e o mundo possam nos prejudicar. Quem quereria cometer a besteira de tornar-se um cristão se a vida futura nada fosse? Quem não poderia dizer: já que aqueles têm vida boa e vivem na gandaia, também quero fazer como os outros! Para que vou me expor, para que me atormentem e eu tenha que aguentar esse sofrimento, ardil, ódio e inveja do mundo? Isso, sem mencionar que um cristão ainda tem que passar por tanta tristeza e pesar interior e tanto temor e pavor da morte, do pecado e da ira de Deus que, na verdade, são as verdadeiras tribulações.

Pois, aquele sofrimento exterior ainda é brincadeira e, apenas, o á-bê-cê da miséria e do sofrimento dos cristãos, [quando] o mundo os persegue, escorraça e aplica toda sorte de malignos ardis. Mas o que vai fundo é o medo que levam no coração ante a ira de Deus, temendo a morte eterna, que tenham que ser camaradas do diabo no abismo do inferno. Isso lhes oprime o coração dia e noite, têm que se bater com isso a ponto de suarem sangue, de modo que eu preferiria ficar encarcerado um ano inteiro, sofrendo fome e sede, a passar um dia, sequer, com esse medo infernal do diabo, com o qual ele acomete os cristãos que, afinal, creem e estão certos da futura ressurreição e vida eterna que lhes está preparada e, por outro lado, do juízo e do fogo eterno sobre os maus. E, justamente, por saberem disso, não têm descanso até serem salvos desse vale da desolação. Pois, aqui, têm diante de si dois caminhos, além do diabo e de sua própria consciência contra si, que lhes diz que não são pios e têm a Escritura por testemunha de que somos todos pecadores e merecemos a condenação; isso o diabo pode aproveitar para torturar a ponto de se suar frio, tendo que lutar para resistir contra isso na fé, para não afundar na depressão e no medo, mas permanecer confiante de que Deus lhe seja gracioso e o queira levar para o céu, para junto de si. Disso, a maioria nada sabe, não temem nem a ira nem o juízo de Deus, nem o diabo ou a morte; pensam que, quando morrerem, estará morrendo uma vaca e, em quanto isso, ficam seguros e alegres, nada experimentam desse tormento. Por isso o cristão, certamente, é uma pessoa extremamente miserável, acima de tudo que se possa chamar de miserável, porque seu coração tem que assar diariamente no fogo, constantemente apavorado e tremendo de medo sempre que lhe passa pela cabeça a morte e o rigoroso juízo de Deus, tendo que se preocupar constantemente se ele indignou a Deus e mereceu o inferno, ainda que seja reto e bem treinado na fé. Pois esses pensamentos não largam dele. Na verdade, parecem muito mais frequentes e fortes do que os pensamentos bons. Por isso, veem-se muitas pessoas profundamente deprimidas e abatidas nessa tribulação e aflição do coração, a ponto de não o dizerem a ninguém, nem terem prazer, nem alegria, nem terem desejo por esta vida.

Por isso, S. Paulo diz, agora: nós teríamos que estar loucos e ser bobos ao nos meter nessa aflição e tristeza, nesse medo e tormento, sem estar seguros da morte e do inferno um momento sequer, se não tivéssemos outra coisa senão esta vida! De que nos adiantaria obter todos os bens do mundo na terra, tornando-nos, para tal, cristãos e tomando sobre nós esse sofrimento? Quem suportaria passar a sua vida com desolação e tormento e nada receber em compensação senão esta vida?

Os pagãos disseram sabiamente: qui mortem metuit, quod vivit, perdit idipsum, tolo é quem tem medo da morte, pois, com isso, perde sua própria vida. Essas seriam palavras boas, se a gente conseguisse praticá-las. Pois isso todo mundo percebe muito bem por si mesmo que, com esse temor, não consegue mais do que estragar, ele próprio, esta vida e que ela para nada lhe serve e nunca mais o deixará contente, como se vê naqueles que se encontram em profundo pesar, não encontrando conforto nem alegria, ainda que a gente os enfeite com todas as joias de ouro, entupa da melhor comida e bebida e lhes apresente toda sorte de diversão e música. Pois não têm nenhum prazer na vida, só pensam na morte e já se encontram na morte. Por isso, dão o conselho de que o melhor é, simplesmente, despachar todo esse medo e tirá-lo da cabeça à força, pensando: para que vamos nos preocupar? Uma vez mortos, estamos mortos. É o que disseram (como S. Paulo apontou depois): “Comamos e bebamos, hoje ou amanhã estaremos mortos” [1 Co 15.32], etc. Isso não faz justiça à realidade e significa, simplesmente, ignorar a ira de Deus, o inferno e a condenação.

Mas isso os cristãos não podem fazer. Não se pode eliminar [este fato] desse jeito do coração, que gostaria de crer e que se sente mais forte à medida em que a fé luta para fortalecer-se. Isto equivale a dizer que, em nenhum momento, [o cristão] está [absolutamente] seguro da sua vida. Ele sempre tem diante dos olhos o julgamento de Deus e o fosso infernal. É preciso confortar as pessoas [nessa situação] com a seguinte pregação: meu caro, embora tu sintas isso e o fato de viver assim te doa incessantemente, sendo um pobre miserável, conforma-te e saibas que, necessariamente, é assim porque tu és um cristão. Caso contrário, não passarias por essa tortura. Não deves resistir a isso, mas, sim, assegurar-te com fé firme de que o teu Cristo que, também, ressuscitou dos mortos, passou por essa aflição e medo do inferno, mas, por sua ressurreição, tudo superou. Por isso, mesmo que eu seja um pecador digno da morte e do inferno, este deve ser o meu consolo e a minha vitória: meu Senhor Cristo vive e, além disso, ressuscitou para me livrar, enfim, do pecado, da morte e do inferno.

Com essa fé, os cristãos precisam mitigar seu sofrimento em manejar o infortúnio. Caso contrário, seria impossível confortar um coração entristecido e intimidado ou repelir os pensamentos com alguma alegria na terra. Mas o que permite isso é o fato de esse homem, Cristo, dizer que ele é o Deus e o Salvador dos miseráveis, não dos que vivem na devassidão, sem medo algum, e, sim, dos que temem o diabo e o inferno, estes devem aceitar o batismo, o púlpito e o evangelho e concluir o seguinte: o fato de eu sentir que tenho medo do inferno e do juízo de Deus é um sinal seguro de que, também, sou um cristão e tenho algo da fé; pois quem fica horrorizado com aqueles, com certeza, acredita na existência de um inferno e um céu; por outro lado, quem não tem esse medo, também nada crê. Por isso, justamente, nesse medo e pavor, vou me confortar e dar uma reviravolta pela fé, dizendo ao diabo e ao meu coração: tu me aterrorizas com pecado e inferno, mas Cristo me fala do céu, da justiça, da vida e da bem-aventurança eternos. Ele me valerá mais do que todo meu sentir e pensar. O que importa, então, é lutar sempre e prevenir-se dessa forma, agarrando e mantendo firme esse artigo, pois ele será necessário na vida e na morte.

(págs 326-331)

[...]

Pois, assim como em Adão todos morrem, em Cristo todos também serão vivificados. [15.22]

S. Paulo fala, aqui, apenas dos cristãos, os quais ele quer ensinar e confortar com este artigo; pois, mesmo que todos tenham que ressuscitar, também, os não-cristãos, só que, para eles, [a ressurreição] não será conforto nem alegria, uma vez que ressurgirão não para a vida, mas, para o juízo. Por isso, também, agora, não se trata de uma pregação confortadora e alegre para o mundo e os ímpios, ao ouvirem esse artigo, conforme o senti em mim mesmo quando eu queria ser um mogne santo – e eu era o mais devoto, a ponto de preferir ouvir a respeito de todos os diabos no inferno a ouvir sobre o dia derradeiro e os meus cabelos ficavam em pé só de pensar nisso. Pois fora o fato de o mundo todo ter a mentalidade de não querer renunciar a esta vida e morrer, levando um susto quando se fala da morte ou da vida no além, nós, todos, participamos da baboseira da santidade própria, acreditando que, com nossa vida e obras, deveríamos saciar o juízo de Deus e merecer o céu, quando, na verdade, com isso, nada mais conseguíamos do que piorar e detestar ainda mais esse dia. Nem quero falar da outra multidão grosseira dos que, aqui, só buscam seu prazer e conforto, desprezam a Palavra de Deus e não dão um centavo por Deus e seu Reino. Se esses se sentem atormentados e não gostam de ouvir [falar] da bem-aventurada ressurreição, isso não causa surpresa. Mas, para nós, essa pregação é puro conforto e alegria, porque ouvimos que já temos, lá em cima, no céu, o nosso melhor tesouro no qual nos alegramos e, não por último, o fato de que ele [nos] ressuscitará e levará para lá, com a facilidade com que se desperta uma pessoa do sono, de modo que sofrimento e dor deixarão de ser e nem mundo nem diabo vão nos atormentar e nos entristecer mais. Ao invés, como agora eles nos perseguem e torturam, o jogo se inverterá, de modo que gritarão de dor eternamente, ao passo que nós nos alegraremos eternamente. Pois, como Cristo será juiz sobre retos e maus, eles, naqueles dias, também terão que aparecer, para receber seu juízo e punição por aquilo que cometeram em Cristo e em nós, por maldade impenitente e diabólica.

[pág.s 338-339]

Lutero, Obras Selecionadas(Martinho Lutero in OBRAS SELECIONADAS, Ed. Sinodal, 2005, “O capítulo 15 da Primeira Carta de S. Paulo aos Coríntios”, páginas indicadas)

Ler 4434 vezes
Avalie este item
(0 votos)