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Lutero defende a clareza das Escrituras

Escrito por  Martinho Lutero
A clareza das Escrituras

Passo ao segundo capítulo, que está ligado a esse. Onde fazes distinção entre os dogmas cristãos, inventas que há alguns que é necessário saber e outros não; dizes que alguns são abstrusos, outros são patentes. Assim ou brincas com as palavras de outros, pelas quais foste enganado, ou exercitas a ti mesmo numa espécie de artifício retórico. Em favor desta opinião, porém, aduzes aquela [palavra] de Paulo em Rm 11.33: “Ó profundidade das riquezas, da sabedoria e do conhecimento de Deus!”, e ainda aquela [passagem] de Is 40.13: “Quem ajudou ao Espírito do Senhor, ou quem foi seu conselheiro?”. Foi fácil para ti dizer essas coisas, seja porque sabias que não escreverias a Lutero, a quem, espero, reconheces algum esforço e discernimento nas Sagradas Letras; se não o conheces, verás que te forçarei também a isso. A distinção que faço – para falar também eu como retórico ou dialético – é a seguinte: Deus e a Escritura de Deus são duas coisas [diferentes], não menos do que são duas coisas o Criador e a criatura de Deus. Ninguém duvida que há muitas coisas abscônditas em Deus, coisas que ignoramos, como ele mesmo diz no tocante ao último dia: “A respeito daquele dia ninguém sabe senão o Pai” [Mc 13.32]. E At 1.7: “Não vos compete conhecer os tempos e momentos”. E mais uma vez: “Eu conheço os que escolhi” [Jo 13.18]. E Paulo: “O Senhor conhece os que lhe pertencem” [2 Tm 2.19], e [passagens] semelhantes. Mas que na Escritura há algumas coisas abstrusas e que nem todas são patentes, isso é divulgado pelos ímpios e sofistas, por cuja boca também tu falas aqui, Erasmo, porém jamais apresentaram um único artigo, e nem podem apresentar, com o qual provassem essa sua insânia. Ora, com tais fantasmagorias Satanás desviou da leitura das Sagradas Letras e tornou desprezível a Santa Escritura, para pôr no governo da Igreja suas pestes extraídas da filosofia. Admito, por certo, que nas Escrituras há muitas passagens obscuras e abstrusas, não por causa da majestade dos assuntos, mas por causa da ignorância em matéria de vocabulário e gramática. No entanto, elas absolutamente não impedem o conhecimento de todas as coisas nas Escrituras. Pois que coisa mais sublime pode ainda permanecer oculta nas Escrituras depois que os selos foram rompidos e a lápide foi removida da entrada do sepulcro50 e depois que foi revelado aquele sumo mistério: Cristo, o Filho de Deus se fez ser humano, Deus é trino e uno, Cristo sofreu por nós e reinará eternamente? Acaso não se conhecem em cantam essas coisas até nas escolas primárias51? Se tiras Cristo das Escrituras, que encontrarás nelas ainda? Portanto, todas as coisas contidas na Escritura estão reveladas, embora algumas passagens sejam obscuras porque ainda não conhecemos as palavras. Estulto e ímpio, porém, é saber que todas as coisas da Escritura estão postas na mais clara luz e, por causa de algumas poucas palavras obscuras, chamar as coisas de obscuras. Mesmo que as palavras sejam obscuras num lugar, são claras em outro. Contudo, é a mesma coisa que, declarada de modo manifestíssimo ao mundo todo, ora é expressa nas Escrituras com palavras claras, ora ainda permanece oculta em palavras obscuras. Daí que, caso a coisa esteja na luz, absolutamente não importa que um sinal seu esteja em trevas, visto que neste meio-tempo muitos outros sinais seus estão na luz. Quem haverá de dizer que uma fonte pública não está na luz porque os que estão numa viela não a veem, ao passo que todos os que estão no mercado a veem?

Portanto, tua referência à gruta de Corício52 é improcedente. Nas Escrituras a coisa não é assim. E as questões que dizem respeito à suma majestade, bem como os mistérios mais abstrusos, não estão mais num beco obscuro, e, sim, nas próprias praças públicas e à vista de todos, revelados e expostos. Pois Cristo nos abriu a inteligência para que entendamos as Escrituras. E o Evangelho foi pregado a toda criatura53. “Por toda terra saiu sua vos” [Rm 10.18; Sl 19.4]. “E tudo quanto foi escrito foi escrito para nossa instrução” [Rm 15.4]. E ainda: “Toda escritura inspirada por Deus é útil para o ensino” [2 Tm 3.16]. Portanto, tu e todos os sofistas, tratai de apresentar um único mistério qualquer que ainda esteja abstruso nas Escrituras. Todavia, o fato de muitas coisas terem permanecido abstrusas para muitas pessoas não se deve à obscuridade da Escritura, mas à cegueira ou indolência delas, que não tratam de ver a verdade claríssima, como diz Paulo a respeito dos judeus em 2 Coríntios 4 [sc. 3.14]: “O véu permanece sobre o coração deles”. E mais uma vez: “Se nosso evangelho está encoberto, então está encoberto naqueles que se perdem, cujos corações foram cegados pelo deus deste século” [2 Co 4.3s.]. Com a mesma temeridade culparia o sol e o dia de serem obscuros a pessoa que velasse os próprios olhos ou saísse da luz e fosse para as trevas e se escondesse. Que parem, pois, os miseráveis seres humanos de imputar com blasfema perversidade as trevas e a obscuridade de seu coração às claríssimas Escrituras de Deus.

Assim, quando aduzes a palavra de Paulo: “Incompreensíveis são seus juízos” [Rm 11.33], pareces relacionar o pronome “seus” com a Escritura. Paulo, porém, não diz: “Incompreensíveis são os juízos da Escritura”, e, sim, “de Deus”; deste modo Is 40.13 não diz: “Quem conheceu a mente da Escritura”, e, sim, “a mente do Senhor”54, se bem que Paulo afirme que os cristãos conhecem a mente do Senhor, mas nas coisas que nos são dadas, como diz no mesmo lugar, em 1 Co 2.12. Vês, portanto, de que forma negligente examinaste essas passagens da Escritura e que as citas com a mesma aptidão com que citas quase tudo em favor do livre-arbítrio. Desta maneira, também os exemplos que acrescentas, não sem suspeição e aguilhão, nada contribuem para o assunto, como os exemplos das distinção de pessoas, da conglutinação da natureza divina e humana, do pecado irremissível, cuja ambiguidade dizes não ter sido suprimida ainda. Se te referes às questões debatidas pelos sofistas acerca dessas coisas, que te fez a inocentíssima Escritura para atribuir à pureza dela o abuso cometido por pessoas celeradas? A Escritura confessa simplesmente a trindade de Deus, a humanidade de Cristo e o pecado irremissível. Nada há aqui de obscuridade e ambiguidade. Porém, a Escritura não fala, do modo como essas coisas acontecem como inventas, e também não há necessidade de saber. Aqui os sofistas expõem seus sonhos. É a eles que deves arguir e condenar, e absolver as Escrituras. Se, contudo, te referes à própria substância da coisa, mais uma vez deves arguir não as Escrituras, e, sim, os arianos55 e aqueles aos quais o Evangelho está encoberto, de modo que, por obra de Satanás, o deus deles, não percebem os claríssimos testemunhos acerca da divindade da Trindade e da humanidade de Cristo. E, para dizê-lo com brevidade, existe uma dupla clareza da Escritura, assim como existe uma dupla obscuridade: uma é externa, colocada no ministério da Palavra; a outra, situada na cognição do coração. Se falas da clareza interna, nenhum ser humano percebe nem um único i nas Escrituras, a menos que tenha o Espírito de Deus. Todos têm um coração obscurecido, de modo que, mesmo que digam e saibam recitar toda a Escritura, nada dela percebem ou conhecem verdadeiramente. Não creem em Deus, nem que são criaturas de Deus, nem qualquer outra coisa, como diz Sl 14.1: “Diz o insipiente em seu coração: 'Não há Deus'”. Pois para compreender toda a Escritura e qualquer parte dela se precisa do Espírito. Se falas da clareza externa, não resta absolutamente nada obscuro ou ambíguo; antes, tudo o que há nas Escrituras foi conduzido à luz certíssima e declarado ao orbe todo pela Palavra.

Lutero, Obras SelecionadasFonte: Lutero, Martinho, Obras Selecionadas, Volume 4, páginas 23 a 25, Editora Sinodal.

Notas

50. Mt 27.66; 28.2.

51. No original consta: Nonne haec etiam in biviis sunt nota et cantata?Bivium significa literalmente encruzilhada, mas também escola elementar, escola primária. O trivium significa o estudo nas três disciplinas básicas desde o século IX: gramática, retórica e dialética.

52. Cf. Diatribe, § 2. A gruta de Corício encontra-se nas imediações de Delfos, consagrada à Pan e às ninfas que ali celebram as orgias noturnas de Dionísio. Essa gruta primeiramente atrai os transeuntes por sua beleza; mas à medida que vão avançando, são afugentados por “certo horror e majestade do numem que nela habita”.

53. Cf. Mc 16.15.

54. Cf. 1 Co 2.16.

55. Arianos são os seguidores de Ário (256-336) que ensinou que o Deus eterno criou o Logos (Jesus Cristo), através do qual criou o universo. Para eles, portanto, Cristo é uma criatura de Deus.

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