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Calvino versus Agostinho sobre o Livre Arbítrio?

Escrito por  James Swan
Agostinho e João Calvino

Eu recentemente me deparei com o link, Luther and Calvin v. Augustine and Justin Martyr on Free Will em um blog intitulado Shameless Popery. Obviamente, em um blog com uma URL incluindo a frase “defesa católica”, Lutero e Calvino provavelmente não serão bem tratados.

Diz-se que Calvino e Lutero “contradizem a si mesmos através de seus escritos”. Diz-se que Lutero é “o primeiro de uma longa linha de teólogos protestantes que fazem este tipo de de argumentos internamente incoerentes” a respeito da vontade. Diz-se que Calvino “fala em círculos” sobre a vontade.

O que me fascinou sobre esta entrada foi a comparação de Agostinho com Calvino a respeito da questão da vontade:


Tanto Lutero como Calvino são grandes fãs de Santo Agostinho, e derivam seus pontos de vista sobre a predestinação em parte de alguns escritos de Agostinho (particularmente um de seus trabalhos especulativos, sua Carta a Simpliciano). Mas tomando uma visão completa dos próprios escritos de Agostinho, está claro que ele não era nem um luterano nem um calvinista em respeito à questão do livre-arbítrio relacionado à salvação.

O ponto de vista de Calvino é basicamente apresentado como absoluto fatalismo, enquanto que um trecho da Cidade de Deus de Agostinho é apresentado para mostrar que humanos cometendo atrocidades são responsáveis por suas ações. O argumento básico parece ser assim: na teologia da Calvino sobre a vontade, humanos cometendo atrocidades não seriam responsáveis, enquanto que na de Agostinho eles seriam. Calvino não acreditava em livre-arbítrio enquanto que Agostinho acreditava. Caso encerrado.

O que não é apresentado nesta entrada é qualquer tipo de análise sobre o que se quer dizer por livre-arbítrio além do seguinte:

Admitidamente, livre-arbítrio é um pequeno mistério. Nós não compreendemos completamente o que ele é, ou como ele opera. Ele desconcerta teístas e ateus igualmente. Mas nós podemos ter certeza que ele existe, em parte porque é necessário para a Justiça de Deus e em parte porque nós não podemos coerentemente falar dele não existindo (não mais do que nós podemos coerentemente falar de um universo auto causado surgindo sem Deus).

Há alguns problemas que vejo aqui. Primeiro, o escritor parece assumir que nós todos temos basicamente o mesmo entendimento sobre a vontade, o que é no mínimo, ingênuo. Segundo, a vontade é definida (por falta de melhor termo!) com respeito a uma especulação filosófica (a vontade deve ser necessariamente livre para Deus ser justo) ao invés de ser de acordo com a teologia bíblica. Uma passagem é mencionada, Ezequiel 14:6, mas aquele verso assume o que nunca foi definido biblicamente, um livre-arbítrio. Eu posso relevar aqueles problemas até certo ponto. Eu me dou conta que o que está sendo publicado é uma pequena entrada de um blog ao invés de um estudo detalhado. Mas o que eu acho imperdoável é um terceiro problema: nem o ponto de vista de Agostinho, nem o de Calvino foi explicado em qualquer forma significativa. Apenas se assume que Calvino era um fatalista e Agostinho acreditava no livre-arbítrio. Calvino não apenas é culpado de ser um fatalista, ele também é culpado de não tratar Agostinho honestamente (cf. esta entrada igualmente).

Isto é de fato um papismo sem vergonha1. Este tipo de papismo sem vergonha em respeito a Calvino remonta a 1542 onde um teólogo católico romano holandês, Albert Pighius, escreveu uma resposta direta à edição de 1539 das Institutas. Calvino declarou que fora Agostinho, os primeiros pais da igreja se desviaram do ponto principal na questão da vontade. Pighius apontou que pode parecer em alguns lugares que Agostinho defendia uma vontade cativa, mas quando todas as obras de Agostinho são levadas em consideração, Agostinho, pelo contrário, se torna o campeão do livre-arbítrio, e está em harmonia com aqueles que vieram antes dele.

Calvino não negou estas acusações, mas de fato respondeu apressadamente a muito do que Pighius escreveu, particularmente usando alusões ou citações patrísticas. Vinte e cinco dos escritos de Agostinho foram ou designadas ou citadas, três escritos de Pseudo-Agostinho foram usados (ao mesmo tempo mencionando dúvidas quanto a autenticidade) e pelo menos trinta e três outras fontes patrísticas parecem ser usadas. Calvino faz abundantes alusões ou citações dos escritos de Agostinho. Ao contrário do que Shameless Popery diz, a Carta a Simpliciano (mencionada acima como a de maior importância para o ponto de vista de Calvino) é citada uma vez. Tem havido estudos para averiguar as citações de Calvino em sua resposta, mais notavelmente por A.N.S. Lane. Parece que quando Calvino apresenta citações bem livres de Agostinho, Lane sustenta que isto provavelmente acontecia porque ele estava citando de memória (ele não tinha mais a fonte em questão) e escrevia com pressa. Se isto prova alguma coisa, prova o entendimento, memorização e familiaridade de Calvino com Agostinho.

Lane declara que Calvino sinceramente acreditava que estava do mesmo lado que Agostinho a respeito da vontade humana. Em um comentário revelador, Lane declara:

Mas quão acurada era a interpretação de Calvino de Agostinho? Por séculos houve controvérsia entre católicos e protestantes sobre esta questão. Mas em tempos recentes se tornou mais fácil para ambos os lados reconhecerem desenvolvimento histórico e interpretar os Pais mais objetivamente. Um ensaio influente pelo beneditino Odilo Rottmanner no século dezenove marcou uma nova vontade por parte de católicos romanos de admitir que nas áreas da graça e predestinação os Reformadores eram largamente justificados em seu apelo a Agostinho67. Algumas notas indicam áreas onde a interpretação de Calvino de Agostinho está aberta a questionamento, mas é amplamente concedido hoje que o impulso principal é acurado68.

67. O. Rottmanner, Der Augustinismus (Munich: J. J. Lenrner, 1892).

68. Sobre um escritor católico romano atual que argumenta que os reformadores (especialmente Lutero) estavam basicamente justificados em seu clamor de representar a tradição agostiniana da igreja nesta questão, veja H. J. McSorley, Luther: Right or Wrong? (New York: Newman & Minneapolis: Augsburg, 1969).

Lane declara em outro lugar:

A posição de Calvino parece correr ao contrário da tradição da igreja Ocidental. Mesmo aqueles, como Agostinho e Tomás de Aquino, que enfatizaram muito a soberania de Deus e a predestinação tomaram cuidado para salvaguardar o livre-arbítrio humano. Agostinho, o grande mentor de Calvino, no fim de sua vida escreveu uma obra intitulada Sobre a Graça E o Livre-arbítrio onde ele se opunha àqueles que ‘defendiam tanto a graça de Deus que negavam o livre-arbítrio humano’. Pareceria que Lutero e Calvino, ao negar o livre-arbítrio, estavam caindo justamente naquele erro e estavam se afastando de toda a tradição agostiniana. Esta é a tradicional interpretação católica romana, inaugurada pelo teólogo holandês Albertus Pighius. Mas a pequena expressão livre-arbítrio pode ter vários significados diferentes. A erudição católica romana mais recente tem sido menos apressada em proclamar a discórdia entre Calvino e a tradição agostiniana. O escritor dominicano C. Friethoff concluiu cinquenta anos atrás que enquanto Tomás aceitava e Calvino rejeitava o livre-arbítrio, não havia contradição envolvida porque eles entendiam coisas bem diferentes com o termo. Um escritor católico romano mais recente, H. J. McSorley, buscou mostrar que os reformadores estavam revivendo o ‘bíblico e católico conceito de servum arbitrium’, apesar dele também detectar um não-bíblico e não-católico ‘conceito necessitário de servum arbitrium’.

O artigo de Lane, Did Calvin Believe in Free Will? faz com um tratamento estendido exatamente o que Shameless Popery deveria pelo menos tentar fazer, mesmo de uma forma simplista: definir o que Calvino defendia a respeito da vontade, então comparar e contrastar com o ponto de vista de Agostinho. Lane não é simplesmente um defensor de Calvino. Ele aponta as similaridades e diferenças entre Calvino e Agostinho a respeito da vontade, concluindo:

Calvino acreditava no livre-arbítrio? Mesmo o próprio Calvino não pode dar uma clara e inequívoca resposta a esta questão. Em diferentes estágios da história humana diferentes graus de liberdade são concedidos à vontade. O ensino de Calvino sobre o livre-arbítrio é muito próximo do de Agostinho. Talvez a maior diferença é a de atitude. Agostinho, enquanto claramente ensinava a escravidão da vontade e a soberania da graça, tomou grande cuidado para preservar o livre-arbítrio humano. Calvino foi muito mais polêmico em sua afirmação da impotência humana e era relutante ao falar do livre-arbítrio. O que Agostinho cuidadosamente salvaguardou, Calvino rancorosamente concedeu.

A concordância ou não com esta conclusão deve ser baseada na cuidadosa análise de Lane. O que Lane é mais cuidadoso em apontar é a definição de termos. Parece que alguns estudiosos (incluindo católicos romanos) que reservam tempo para ver como Agostinho e Calvino usam e entendem o “livre-arbítrio”, descobrem um grande grau de harmonia. Seria interessante ver como um blog como Shameless Popery avaliaria a sinopse de Lane, ao invés de simplesmente apresentar “chocantes” diferenças vagamente definidas que recorrem a caricaturas.

Fonte: http://beggarsallreformation.blogspot.com.br/2013/06/calvin-vs-augustine-on-free-will.html

Notas

1. N. do T.: Em alusão ao nome do blog, Shameless popery.

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