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Calvino e o quarto mandamento

Escrito por  João Calvino

28. TEOR E APLICAÇÃO DO QUARTO MANDAMENTO

O Senhor do sábado

O fim deste mandamento é que, mortos para os nossos próprios interesses e obras, meditemos no Reino de Deus e a essa meditação nos apliquemos com os meios por ele estabelecidos. Contudo, uma vez que tem este mandamento uma consideração peculiar e distinta dos outros, ele requer ordem de exposição um pouco diferente. Os antigos costumam chamá-lo um mandamento prefigurativo, porque contém a observância externa de um dia, a qual foi abolida, com as demais figuras, na vinda de Cristo, o que certamente é dito por eles com verdade, mas ferem a questão apenas pela metade. Por isso tem-se de buscar uma exposição mais profunda e levar em consideração três causas pelas quais, a mim me parece ficar patente, eles têm observado este mandamento.

Primeira, pois o celeste Legislador quis que sob o descanso do sétimo dia prefigurasse ao povo de Israel um repouso espiritual, pelo qual devem os fiéis descansar de suas próprias atividades para que deixem Deus operar neles. Segunda, quis ele que um dia fosse estabelecido no qual se reunissem para ouvir a lei e realizar os atos de culto, ou, pelo menos, o consagrassem particularmente à meditação de suas obras, de sorte que, por esta rememoração, fossem exercitados à piedade. Terceira, ordenou um dia de repouso no qual se concedesse aos servos e aos que vivem sob o domínio de outros para que tivessem alguma relaxação de seu labor.

29. A IMPORTÂNCIA DO SÁBADO E SEU SENTIDO ESPIRITUAL.

Contudo, somos ensinados em muitas passagens que essa prefiguração do descanso espiritual teve o lugar principal no sábado. Com efeito, de quase nenhum mandamento mais severamente o Senhor exige obediência. Quando, nos profetas, quer dar a entender que toda a religião está subvertida, queixa-se Deus de que seus sábados foram profanados, violados, não observados, não santificados, como se, posta de lado esta deferência, nada mais restasse em que pudesse ser honrado [Is. 56.2; Jr 17.21-23.27; Ex 20.12,13; 22.8; 23.38].

A observância lhe cumula os mais sublimados louvores, donde também os fiéis, entre os demais oráculos, estimavam sobremaneira a revelação do sábado. Pois assim falam os levitas em Neemias [9.14], na assembléia solene: “Deste a conhecer a nossos pais teu santo sábado; mandamentos, e cerimônias, e a lei lhes deste pela mão de Moisés”. Vês como o sábado é tido de singular dignidade entre todos os mandamentos da lei. Todos estes preceitos servem para exaltar a dignidade do ministério, que é mui esplendidamente expresso por Moisés e Ezequiel. Assim tens no Êxodo [31.13, 14, 16, 17a]: “Vede que guardeis meu sábado, porque é um sinal entre mim e vós, em vossas gerações, para que saibais que Eu sou o Senhor, que vos santifico. Guardai o sábado, pois ele é santo para vós”. “Guardem o sábado os filhos de Israel, e o celebrem em suas gerações; é um pacto sempiterno entre mim e os filhos de Israel, e um sinal perpétuo”. Ora, ainda mais destacadamente o reitera Ezequiel, cuja suma, entretanto, é esta: que o sábado fosse por sinal pelo qual Israel pudesse conhecer que Deus lhe era o santificador [Ez 20.12].

Se nossa santificação se patenteia na mortificação da própria vontade, então mui adequada correspondência se oferece do sinal externo com a própria realidade interior. Importa que nos desativemos totalmente, para que Deus opere em nós, abrindo mão de nossa vontade, resignando o coração, abdicando toda a carne de seus apetites. Enfim, impõe-se abster-nos de todas as atividades de nosso próprio entendimento, para que, tendo a Deus operando em nós [Hb 13.21], nele descansemos, como também o ensina o Apóstolo [Hb 4.19].

30. O SENTIDO TIPOLÓGICO DO DIA

A observância de um dia dentre cada sete representava aos judeus esta cessação perpétua de atividades, a qual, para que fosse cultivada com religiosidade maior, o Senhor a recomendou com seu próprio exemplo. Pois é de não somenos valia para aquecer o zelo do homem que saiba estar trilhando à imitação do Criador.

Se alguém procura algum sentido secreto no número sete, uma vez que na Escritura este é o número da perfeição, não foi ele escolhido sem causa para expressar perpetuidade. Ao que também confirma isto: que Moisés põe termo à descrição da sucessão de dias e noites com o dia em que narra haver o senhor descansado de suas obras. Pode-se também apresentar outro significado provável do número, isto é, que o Senhor assim indicou que o sábado nunca haverá de ser absoluto até que tenha chegado o último dia. Pois aqui começamos nosso bem-aventurado descanso nele, descanso em que fazemos diariamente novos progressos. Mas, porque ainda incessante é a luta com a carne, não se haverá de consumar antes que se cumpra aquela profecia de Isaías [66.23], enquanto a lua nova for continuada por lua nova, sábado por sábado, até quando, na verdade, Deus vier a ser tudo em todas as coisas [1 Cor 15.28].

Portanto, pode parecer que, mediante o sétimo dia, o Senhor tenha delineado a seu povo a perfeição futura de seu sábado no Último Dia, a fim de que, pela incessante meditação do sábado, a esta perfeição aspirasse por toda a vida.

31. CRISTO, O PLENO CUMPRIMENTO DO SÁBADO.

Se a alguém desagrada esta interpretação do número como sendo por demais sutil, nada impeço a que a tome em termos mais simples, a saber: que o Senhor estabeleceu um dia determinado em que o povo se exercitasse, sob a direção da lei, a meditar na incessabilidade do descanso espiritual; que Deus designou o sétimo dia, ou porque previa ser o mesmo suficiente para isso, ou para que, proposta uma imitação de seu exemplo, melhor estimulasse o povo, ou, na realidade, o exortasse a não atentar para o sábado com outro propósito senão que o conformasse a seu Criador. Ora, pouco interessa que interpretação se adote, desde que subsista o mistério que principalmente se delineia: o referente ao perpétuo descanso de nossos labores.

Ao contemplar isto, os Profetas reiteradamente relembravam os judeus, para que não pensassem haver-se desincumbido da obrigação do sábado com a simples cessação física do trabalho. Além das passagens já referidas, assim tens em Isaías [58.13,14]: “Se apartares do sábado teu pé, para que não faças tua vontade em meu santo dia, e ao sábado chamares deleitoso e o dia santo do Senhor glorioso, e o glorificares, não seguindo teus caminhos e não fazendo tua vontade, de sorte que fales tua palavra, então te deleitarás no Senhor”, etc.

Mas, não há dúvida de que pela vinda do Senhor Jesus Cristo o que era aqui cerimonial foi abolido. Pois ele é a verdade, por cuja presença se desvanecem todas as figuras; o corpo, a cuja visão são deixadas para trás as sombras. Ele é, digo-o, o verdadeiro cumprimento do sábado. Com ele, sepultados por meio do batismo, fomos enxertados na participação de sua morte, para que, participantes de sua ressurreição, andemos em novidade de vida [Rm 6.4]. Por isso, escreve o Apóstolo em outro lugar que o sábado tem sido uma sombra da realidade futura, e que o corpo, isto é, a sólida substância da verdade, que bem explicou naquela passagem, está em Cristo [Cl 2.17]. Esta não consiste em apenas um dia, mas em todo o curso de nossa vida, até que, inteiramente mortos para nós mesmos, nos enchamos da vida de Deus. Portanto, que esteja longe dos cristãos a observância supersticiosa de dias.

32. AINDA QUE CANCELADO, HÁ NO SÁBADO ASPECTOS VIGENTES

Com efeito, por isso é que nas velhas sombras não se devem numerar as duas causas posteriores que se enfeixam neste mandamento; ao contrário, convêm elas, igualmente, em todos os séculos, ainda que o sábado esteja cancelado, entre nós, não obstante, ainda tem lugar isto: primeiro, que nos congreguemos em dias determinados para ouvir a Palavra, para partir o pão místico, para as orações públicas; segundo, para que se dê aos servos e aos operários relaxação de seu labor.

Paira além de dúvida que, na preceituação do sábado, o Senhor teve em mira a ambas. Amplo testemunho tem a primeira, mesmo que seja só no uso dos judeus. A segunda gravou-a Moisés no Deuteronômio, nestas palavras: “Para que descanse teu servo, e tua serva, assim como também tu; lembra-te de que também tu mesmo foste servo no Egito” [Dt 5.14,15]. De igual modo, no Êxodo: “Para que descanse teu boi e teu jumento e tome alento o filho de tua serva” [Ex 23.12]. Quem há de negar que uma e outra nos convêm, exatamente como convinha aos judeus?

Reuniões de Igreja nos são preceituadas pela Palavra de Deus, e sua necessidade nos é suficientemente assinalada pela própria experiência da vida. Como se podem elas realizar, a não ser que tenham sido promulgadas e tenham seus dias estabelecidos? Segundo a postulação do Apóstolo [1 Cor 14.40], todas as coisas entre nós devem ser feitas decentemente e com ordem. Tão longe, porém, está de que se possa conservar a decência e a ordem, a não ser mediante esta organização e regularidade, as quais, se se desfazem, sobre a Igreja pairam mui presente perturbação e ruína. Pois se a mesma necessidade pesa sobre nós, em socorro da qual o Senhor constituíra o sábado para os judeus, ninguém alegue que ele não nos diz respeito. Ora, nosso providente e indulgentíssimo Pai quis prover à nossa necessidade, não menos que à dos judeus.

Por que, dirás, não nos congregamos antes diariamente, de sorte que, dessa forma, se ponha termo à distinção de dias? Prouvera que, de fato, isto se nos concedesse! E, por certo, a sabedoria espiritual era digna de que se lhe reservasse diariamente alguma porçãozinha do tempo. Mas, se pela fraqueza de muitos não se pode conseguir que se realizem reuniões diárias, e a norma da caridade não permite deles exigir mais, por que não obedeçamos à norma que nos foi imposta pela vontade de Deus?

33. O ESPÍRITO E FUNÇÃO DA OBSERVÂNCIA DO DOMINGO

Sou compelido a estender-me um pouco mais aqui, porque alguns espíritos inquietos estão hoje a causar tumulto por causa do Dia do Senhor. Acusam o povo cristão de ser nutrido no Judaísmo, porquanto retém certa observância de dias. Eu, porém, respondo que estes dias são por nós observados aquém do Judaísmo, porque nesta matéria diferimos dos judeus por larga diferença. Pois, não o celebramos como uma cerimônia revestida com a mais estrita religiosidade, pela qual pensamos representar-se um mistério espiritual. Pelo contrário, tomamo-lo como um remédio necessário para reter-se ordem na Igreja.

Ademais, Paulo ensina que os cristãos não devem ser julgados por sua observância, uma vez ser ela mera sombra da realidade futura [Cl 2.16,17]. Por isso, arreceia-se de que haja trabalhado em vão entre os gálatas, porque ainda observavam dias [Gl 4.10,11]. E aos romanos declara ser supersticioso se alguém julga entre dia e dia [Rm 14.5]. Quem, entretanto, exceto estes desvairados somente, não vê que observância o Apóstolo tinha em mente? Pois, aqueles a quem se dirigia não contemplavam neste propósito a ordem política e eclesiástica; antes, como retivessem os sábados e dias de guarda como sombras das coisas espirituais, obscureciam em extensão correspondente a glória de Cristo e a luz do evangelho. Abstinham-se dos labores manuais não por outra razão senão para que fossem embaraços aos sacros estudos e meditações; e assim, com uma certa devoção, sonhavam que, ao observá-lo, estavam a rememorar mistérios dantes recomendados. Contra esta antagônica distinção de dias, digo-o, investe o Apóstolo, não contra a legítima opção que serve à paz da sociedade cristã. Com efeito, nas igrejas por ele estabelecidas, o sábado era mantido para este propósito. Ora, ele prescreve esse dia aos coríntios, para que se coletem ofertas a fim de serem socorridos os irmãos hierosolimitanos [1Co 16.2].

Se porventura se teme superstição, muito mais perigo havia nos dias de guarda judaicos, nos dias do Senhor, do que agora observam os cristãos. Pois, visto que para suprimir-se a superstição se impunha isto, foi abolido o dia sagrado observado pelos judeus; e como era necessário para se conservarem o decoro, a ordem e a paz na Igreja, designou-se outro dia, o domingo, para este fim.

34. O GENÚINO SENTIDO DO DOMINGO

Contudo, não foi sem alguma razão que os antigos escolheram o dia do domingo para pô-lo no lugar do sábado. Ora, como na ressurreição do Senhor está o fim e cumprimento daquele verdadeiro descanso que o antigo sábado prefigurava, os cristãos são advertidos pelo próprio dia que pôs termo às sombras a não se apegarem ao cerimonial envolto em sombras. A tal ponto, contudo, não me prendo ao número sete que obrigue a Igreja à sua servidão, pois não haverei de condenar as igrejas que tenham outros dias solenes para suas reuniões, desde que se guardem da superstição. Isto ocorrerá, se se mantiver a observância da disciplina e da ordem bem regulada.

A síntese do mandamento é: como a verdade era comunicada aos judeus sob prefiguração, assim ela, em primeiro lugar, nos é outorgada sem sombras, para que por toda a vida observemos um perpétuo sabatismo de nossos labores, a fim de que o Senhor em nós opere por seu Espírito; em segundo lugar, para que cada um, individualmente, sempre que disponha de lazer, se exercite diligentemente na piedosa reflexão das obras de Deus. Então, ainda, para que todos a um tempo observemos a legítima ordem da Igreja, constituída para ouvir-se a Palavra, para a administração dos sacramentos, para as orações públicas. Em terceiro lugar, para que não oprimamos desumanamente os que nos estão sujeitos.

E assim se desvanecem as mentiras dos falsos profetas, os quais, em séculos passados, imbuíram o povo de uma opinião judaica, asseverando que nada mais foi cancelado senão o que era cerimonial neste mandamento, com isto entendem em seu linguajar a fixação do dia sétimo, mas remanescer o que é moral, isto é, a observância de um dia na semana. Com efeito, isto outra coisa não é senão mudar o dia por despeito aos judeus e reter em mente a mesma santidade do dia, uma vez que ainda nos permanece nos dias sentido de mistério igual ao que tinha lugar entre os judeus. E de fato vemos que proveito têm fruído com tal doutrina, pois quantos deles se apegam às estipulações superam três vezes aos judeus em sua crassa e carnal superstição de sabatismo, de sorte que as reprimendas que lemos em Isaías [1.13-15; 58.13] nada menos lhes convêm hoje que àqueles a quem o Profeta increpava em seu tempo.

Contudo, importa manter-se, principalmente, o ensino geral: para que a religião não pereça ou enlanguesça entre nós, devem ser realizadas diligentemente as reuniões sagradas e deve dar-se atenção aos meios externos que servem para fomentar o culto divino.

Institutas edicao classicaCALVINO, João, As Institutas, Edição Clássica, Ed. Cultura Cristã, 2ª ed., 2006, vol. II, págs. 154-159.

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