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Influências protestantes no capitalismo

Escrito por  André Biéler
capitalismo1

É absolutamente certo que, como muitas vezes se ressaltou, Calvino valorizou a livre iniciativa, base do atual capitalismo liberal, porque tal liberdade corresponde a um aspecto importante da vocação, que Deus dirige a cada indivíduo pelo exercício de um trabalho particular. Mas, é também absolutamente verdadeiro que, por outro lado, ele insistiu muito nos corretivos sociais, que devem beneficiar a livre iniciativa, para evitar os abusos sempre sedutores da liberdade. Deu evidência à necessidade de legislação social rigorosa, capaz de proteger os fracos e os pobres contra os abusos sempre possíveis dos fortes e dos ricos.

A legitimidade de tal legislação fundamenta-se na vocação providencial do Estado. Em verdade, a Providência divina serve-se do Estado - desde que ele seja consciente dos deveres e dos limites de sua missão - para frear e reprimir os abusos do homem natural, sempre inclinado a enriquecer-se sem preocupar-se com os efeitos perversos, próximos ou longínquos, de sua atividade, mesmo legítima.

Se, pois, Calvino é muitas vezes considerado, não sem razão, embora de maneira demasiadamente simplista às vezes, como um teólogo que estimulou o desenvolvimento do liberalismo econômico, deve-se a bem da verdade dizer que ele é, também, indiscutivelmente, o ancestral do Cristianismo social. Não cessou de insurgir-se contra as injustiças de uma liberdade econômica sem compensação social e esforçou-se por corrigir-lhe os efeitos nocivos. A intervenção legislativa do Estado no domínio econômico é, por conseguinte, um princípio conforme à ética social que foi adotada desde o início da Reforma, diante de um capitalismo em via rápida de emancipação de toda coerção moralmente fundada.

Naqueles tempos, essa vocação específica do Estado não repousava, ainda, numa ideologia profana, capaz de desfigurar-lhe o sentido. Com a Reforma, reflete-se a partir de uma visão bíblica da sociedade. A vida social não poderia ser abandonada a ela própria, às suas próprias forças, sem intervenção ética corretiva. É só mais tarde que as ideologias profanas do progresso, corolários da fé deísta, otimista e determinista do século das Luzes, abandonarão a economia sem reservas às forças do egoísmo individual e social que a desfiguram. Essa fé no progresso espontâneo da humanidade caracterizará a ideologia do liberalismo integral assim como a dos diversos socialismos.

Serão examinados alguns aspectos da ética equilibrada da Reforma nessas matérias. Os parágrafos que seguem são resumo muito sucinto dos numerosos trabalhos consagrados a esses problemas1.

6. Ética calvinista do trabalho

Como toda a ética do reformador, a ética do trabalho baseia-se, portanto, na visão bíblica das realidades sociais. É uma ética natural, de uma humanidade atualmente desnaturada. A ética evangélica destina-se a servir de referência aos seres humanos para ajudá-los a discernir o bem e o mal, porque bem e mal são igualmente naturais, um como o outro.

A dignidade do trabalho humano, quando em conformidade com o desígnio de Deus, atém-se ao fato de que ele é, de certa forma, o prolongamento do trabalho que o próprio Deus empreende para a manutenção de suas criaturas. É a resposta à vocação que este Deus lhes dirige para que elas se utilizem das riquezas da criação, postas por ele, gratuitamente, à disposição delas. A despeito dessa eminente dignidade, a obra humana permanece, porém, obra profana. Não poderia aspirar à sua sagração. Quem a executa assume toda a responsabilidade perante Deus e perante os homens.

Todavia, por causa de sua natureza desnaturada, o homem despreocupa-se da glória de Deus e, por conseguinte, do bem de seu próximo. Crê poder dispor de seu trabalho como bem lhe parece, de forma autônoma e egoísta. Pode mesmo fazer dele seu Deus. E pensa, naturalmente, que pode dispor igualmente, como bem lhe apraz, do trabalho alheio e, particularmente, dos frutos do trabalho daqueles que por ele são remunerados. Assim, desligado da ordem de Deus que lhe confere seu sentido e sua dignidade, esse trabalho pode transformar-se em servidão, maldição, e tornar-se para si mesmo e para os outros, fonte de sofrimentos e lágrimas. Degrada-se ao ponto de não ser considerado mais que simples mercadoria, como o destacarão os economistas do século XIX.

O que se faz mister, portanto, para que o trabalho recupere seu sentido original? Urge que seja novamente considerado como serviço e reconhecido como tal, com sua dignidade. E para tanto, faz-se preciso que o homem restaure sua situação perante Deus. Faz-se necessário que se associe de novo, pessoalmente, à obra espiritual que Deus persegue incansavelmente no mundo, para o bem de todas as suas criaturas. E é preciso que associe igualmente a essa obra divina seu próprio trabalho e o dos outros.

Paradoxalmente, para isso alcançar, o homem deve parar momentaneamente de trabalhar, a fim de readquirir nova comunhão com Deus. É necessário que silencie diante dele, para escutá-lo. Esse é o significado do dia de repouso, o sabá a que alude um dos dez mandamentos da Lei de Deus (Gênesis c. 20). É o dia da santificação, a saber, da marcha espiritual, pela qual cada indivíduo é convidado a reencontrar sua verdadeira identidade de criatura de Deus, motivada e estimulada por seu amor.

Assim, o repouso humano não possui valor em si mesmo. Se proporciona ao trabalhador um descanso físico e psicológico desejado, necessário, isso é uma feliz conseqüência, mas um efeito secundário. Não é o essencial. O dia do repouso foi instituído para permitir a cada indivíduo reencontrar-se com Deus, com a comunidade dos crentes, retornar às fontes e reencontrar, assim, o sentido de sua vida inteira, e particularmente de seu trabalho. "Os fiéis", escreve Calvino, "devem repousar de seus próprios trabalhos, a fim de permitir que Deus opere neles". E "agir é, pois, aderir em todas as coisas à ação de Deus"2.

Ora, essa tomada de posição do homem diante de Deus só é possível pela mediação de Cristo. Para que reconquiste o justo sentido de sua existência e de seu trabalho, o homem deve entrar em comunhão com Deus pelo caminho que lhe abre Cristo. É necessário, pois, passar pelo arrependimento e deixar-se santificar, restaurar, pelo espírito de Deus. E essa santificação opera-se na comunidade dos fiéis, na comunhão com aqueles que buscam em conjunto a renovação de sua existência. Assim, somente dessa forma o trabalho cotidiano pode readquirir seu significado e reencontrar sua qualificação. Só desse modo pode tornar a ser uma obra em conformidade com o desígnio de Deus e restabelecer entre os homens relações sociais justas. Eis porque o mandamento bíblico da santificação do dia do repouso faz menção às relações do trabalho, ao relacionamento entre senhores e súditos, isto é, em termos modernos, entre patrões e operários, entre empregadores e empregados, entre os que fornecem o capital da empresa e os que executam o trabalho. A espiritualidade cristã, quando autêntica, não é, pois, fuga na interioridade. É contemplação do agir de Deus, que quer ser, claramente, o árbitro das relações humanas no trabalho, na cidade e, também, nas trocas comerciais e financeiras. Aliás, como também em todos os demais domínios da vida (Mas estes não constituem objeto das reflexões desta obra).

Pode-se, por isso, dizer, com toda a justiça, que Calvino conferiu ao trabalho sua dignidade. Mas, é um equívoco censurá-lo por haver instituído a religião do trabalho. Se protestantes, ou mesmo sociedades de origem calvinista, vieram a ceder a essa extravagância, como se pode constatar por vezes (examinar-se-á esse assunto), é porque adotaram ideologias profanas que, como o liberalismo integral ou o marxismo, consideram o trabalho sem levar em conta o sentido que Deus lhe empresta. Fazem dele um valor em si, autônomo, apartado de suas raízes espirituais e da ética que delas deriva, detentoras de seu verdadeiro significado.

Acrescentemos que esse sentido do trabalho não é estático, mas dinâmico. A vocação de Deus não enclausura o cristão em atividade imutável. Ao contrário, é apelo para enfrentar, de maneira flexível, as situações novas. Porque Deus, que convoca o homem ao trabalho, age sempre no contexto de uma história concreta e evolutiva, que obriga cada indivíduo a adaptar-se às circunstâncias.

7. A ociosidade, o desemprego e os lucros abusivos

Já que o trabalho, sob a ótica calvinista, é obra pela qual o homem se realiza correspondendo à vocação que Deus lhe dirige, a ociosidade é vício que corrompe a humanidade. O repúdio ao trabalho, assim como a preguiça, significa para o homem a negativa de corresponder à expectativa de Deus, uma forma de ruptura com ele. "A bênção do Senhor", escreve Calvino, "está nas mãos daquele que trabalha. É certo que a preguiça e a ociosidade são malditas por Deus"3.

É por isso que Calvino denuncia a culpa dos que obtêm suas posses do trabalho alheio, sem proporcionar à comunidade trabalho pessoal, serviço real (remunerado ou não). Descreve esses "ociosos e inúteis que vivem do suor alheio e, portanto, não prestam contribuição alguma para ajudar o gênero humano"4.

Ei-nos novamente bem distantes tanto dos usos da sociedade feudal anterior à Reforma quanto dos que prevaleceram em seguida nas sociedades onde floresceu o capitalismo primitivo ou selvagem. Que nessas sociedades alguns trabalhavam demasiadamente, enquanto outros são conduzidos ao repouso forçado, eis um indício grave do esquecimento da ética cristã ou do desprezo por ela. É por isso que, pelas mesmas razões teológicas relacionadas com o valor do trabalho, o desemprego não pode ser tolerado, nem admitido, como uma fatalidade do ponto de vista desta ética. Já que o trabalho é essa obra indispensável, pela qual o homem se realiza na obediência a Deus, o desemprego é uma calamidade social que deve ser combatida com o máximo vigor. Privar o homem do seu trabalho é verdadeiro crime. É, de certa forma, subtrair-lhe um pouco a vida. "Se bem que recebamos nosso alimento da mão de Deus", escreve Calvino, "ele nos ordenou trabalhar. O trabalho é eliminado? Então a vida humana é aviltada". "Sabemos que toda a renda de todos os artesãos e operários decorre de poder ganhar a vida...". "Então, já que Deus lhes depositou assim a vida em suas mãos, isto é, no seu trabalho, privá-los dos bens necessários é como degolá-los"5.

A ética reformada do trabalho ordena, portanto, ação social eficaz para prevenir o desemprego e intervir em benefício de suas vítimas.

Tal ética estava na origem das múltiplas intervenções de Calvino e de seus colegas na luta contra esse flagelo. Para eles não estava em discussão abandonar-se à filosofia do "laisser-faire", que prevaleceu mais tarde na ideologia profana do liberalismo integral e dos economistas sem imaginação. Preconizavam a intervenção moderadora do legislador para melhor distribuição de bens em função da conjuntura. Não imaginavam, tampouco, que o Estado devesse assumir a função econômica: isso equivaleria a subtrair aos indivíduos suas responsabilidades e iniciativas, inerentes à sua vocação, preocupada com o próprio trabalho e com o alheio. E a ociosidade, que a ética cristã combate, não pode ser encorajada, também, por uma lassidão social tolerante demais para com os preguiçosos.

Sempre em função de seu significado espiritual e ético, o trabalho de cada indivíduo deve ser respeitado e não é lícito dele retirar lucro abusivo. "Deus nos ensina", escreve ainda Calvino, "que nos cabe tratar com tal humanidade os que cultivam a terra para nós, que eles não sejam onerados imoderadamente, mas possam prosseguir no seu trabalho e nele tenham oportunidade de dar graças a Deus"6. Deus quer "corrigir a crueldade que existe nos ricos, os quais empregam pessoas pobres, mas não as recompensam pelo seu trabalho"7.

Então, se a liberdade é indispensável ao exercício da vocação para o trabalho, que Deus dirige a toda pessoa humana, essa liberdade não pode ser considerada isoladamente, independente da busca de justa solidariedade entre os parceiros sociais, todos os atores da economia.

Sabe-se com que vigor Calvino se esforçou para pôr em prática o ensino espiritual e ético que ele ministrava cotidianamente. Interveio constantemente junto às autoridades, tanto para eliminar a ociosidade quanto para combater o desemprego, que se tornava ameaçador quando os refugiados estrangeiros afluíam para a cidade de Genebra. Foi em razão de suas insistências que o Pequeno Conselho, um dos conselhos da cidade, estimulou a criação de novas indústrias, como a tecelagem, depois as manufaturas de tecidos de seda para criar assim novos postos de trabalho e absorver o desemprego8.

8. O conceito reformado do salário

capitalismo2É sempre a partir de considerações teológicas particulares que Calvino define uma ética concreta. E assim é, mais notadamente ainda, a propósito do salário.

O salário humano retira seu significado de uma analogia com a recompensa que Deus concede ao homem por suas obras. De fato, ela depende unicamente de seu amor. Tudo o que recebe um ser humano é devido à graça de Deus. É ele que provê gratuitamente a sustentação da vida, por pura misericórdia. "Falando com propriedade", escreve Calvino, "Deus nada deve a ninguém". "Qualquer obrigação de que nos desincumbamos, Deus não está absolutamente obrigado a pagar-nos salário algum"9.

Na sua bondade, porém, Deus não abandona suas criaturas sem lhes dar o que lhes é necessário para viver. Remunera suas obras, não por obrigação, mas por amor. "Por sua bondade gratuita, oferece-nos salário", escreve ainda o reformador, "aluga nosso trabalho, o qual lhe é devido mesmo sem a remuneração"10.

O salário humano concedido a todo trabalhador é, portanto, a expressão tangível do salário gratuito e imerecido com que Deus privilegia a obra de cada indivíduo. Assim, por mais profano que seja, o salário se reporta à obra de Deus. Expressa de forma visível a intervenção de Deus em favor da frágil existência humana. Além disso, porque esse salário é o sinal da graça de Deus, não pode ser considerado como favor, que o dono do trabalho possa dispor como bem lhe aprouver. Dando ao trabalhador a remuneração de seu trabalho, o dono nada mais faz que transferir ao próximo aquilo que este tem direito da parte de Deus.

Por causa desse significado espiritual e ético conferido ao salário, o produto do trabalho não pertence, portanto, mais ao patrão que ao operário, ambos sócios na atividade comum. Em conjunto, recebem o produto como a recompensa providencial de seu esforço. Patrões e empregados são, em conjunto e igualmente, devedores de Deus segundo os dons que receberam e puseram em atividade, sem mérito maior para uns ou outros. Devem, portanto, repartir esses frutos de comum acordo, livremente, mas levando em conta a contribuição inicial e a responsabilidade de cada um. Disso decorre que não se trata simplesmente de regular-se pela lei da oferta e da procura, sem qualquer outra consideração ética. E mesmo que tal ética jamais haja sido aplicada à letra, é sua orientação espiritual que importa observar. A negociação, aqui como em qualquer lugar, deve ocorrer. A negociação é um princípio social superior, que deriva diretamente do fato de que nenhum ator econômico é, sozinho, dono do que produz em conjunto com os outros. O produto permanece sinal concreto da graça de Deus, um dom a partilhar.

9. Contra a exploração dos trabalhadores.

Por certo Calvino não ignora as regras do mercado. Mas, precisamente estas, não podem ser as únicas que devem ser levadas em conta. Devem ser complementadas e corrigidas de acordo com essas referências espirituais e éticas. Impõe-se especialmente levar em consideração as necessidades e a dignidade de todos os parceiros. É que a avidez ameaça sempre perverter as relações sociais, particularmente quando a conjuntura é adversa para os trabalhadores mais fracos.

"Eis como muitas vezes procedem os ricos", escreve Calvino. "Espreitam as ocasiões favoráveis para reduzir à metade os salários dos pobres, quando estes não têm onde empregar-se. Estes estão desprovidos de tudo, dirá o rico, tê-los-ei por um pedaço de pão, porque precisam, embora contra a vontade, se renderem a mim. Dar-lhes-ei meio salário e têm de contentar-se. Quando, pois, usamos de tal maldade, conquanto não tenhamos negado o salário, há sempre crueldade, e lesamos um pobre"11.

Destarte, em matéria de remuneração, o que é justo sob o aspecto da ética está, muitas vezes, distante do que é a norma no mundo econômico.

Sem que, nem por isso, recomende a revolução dos assalariados explorados, o reformador constata que Deus está atento às reclamações dos trabalhadores espoliados: ele não se esquece dos empregadores que abusam deles. De fato, "com que maior violência se pode deparar", escreve, "do que fazer morrer de fome e de miséria os que nos fornecem o pão com o seu trabalho? E apesar disso, essa maldade tão absurda é muito comum. É que existem muitas pessoas que possuem temperamento tirânico e pensam que a humanidade foi feita somente para eles. São Tiago afirma que o salário grita, porque tudo o que os homens retêm em seu poder, ou por fraude, ou por violência ou força, clama vingança aos gritos. Faz-se imperioso observar o que acrescenta: o grito dos pobres chega até os ouvidos de Deus, a fim de que saibamos que as maldades, que lhes são feitas, não ficarão impunes"12.

Ainda nessa matéria, Calvino interveio junto aos seus colegas para que a ética da justa remuneração fosse aplicada na sua cidade. Àquela época, como na maioria dos países vizinhos, a população atravessava período difícil, caracterizado por alta generalizada do custo de vida. Os salários não acompanhavam essa elevação. Os assalariados menos aquinhoados, o proletariado, entraram em agitação. Em 1559, o Conselho, para prevenir qualquer rebelião, proibiu a reunião de trabalhadores, suprimindo seu direito a associação. Advieram perturbações sociais, entre os gráficos principalmente. Sob a iniciativa dos pastores, o Conselho, de comum acordo com os representantes da profissão, tomou medidas para regulamentar a atividade gráfica. Graças a essa intervenção e à ponderação dos interessados, Genebra evitou as greves que perturbaram Lion e Paris naqueles tempos. Essa paz social, obtida mediante a negociação entre todas as partes, contribuiu para a recuperação da economia de Genebra e para seu desenvolvimento rápido em comparação com as economias vizinhas.

10. Legitimidade do comércio, das trocas e da divisão do trabalho.

Enquanto a sociedade medieval menosprezava o comércio, o Cristianismo reformado o reabilitou inspirando-se, uma vez mais, no ensinamento bíblico. Já que Deus convoca cada indivíduo para uma missão particular, explica Calvino, torna-o dessa forma dependente do trabalho e dos serviços alheios. Assim, pois, cada indivíduo tem necessidade de usufruir das outras atividades humanas. Certa divisão do trabalho está, portanto, em conformidade com o desígnio de Deus. Ela manifesta a interdependência de suas criaturas e acentua a utilidade dos vínculos que a atividade econômica tece na sociedade. Cada indivíduo é dependente dos outros. Desse modo expressa-se a solidariedade que liga os homens entre si. E tal solidariedade implica troca permanente entre os indivíduos, reciprocidade de serviços. O comércio, por conseqüência, é o corolário da vocação individual para um trabalho particular. As trocas são por conseguinte indispensáveis para que se realize a ordem social harmoniosa que Deus quer ver reinar entre os homens. Nenhum deles pode bastar-se.

É pouco provável, porém, que Calvino tenha aplicado essas observações, tais quais foram feitas, à divisão industrial do trabalho que não conheceu, levada ao exagero, como o foi, a partir do século XIX. É que tal divisão, que reduziu o homem a simples máquina, destruiu a própria natureza do trabalho criador, individual, resposta a uma vocação personalizada.

Como todas as outras atividades humanas, as trocas somente são úteis se estão em conformidade com a vontade de Deus, à ética cristã. Mas o homem desnaturado inclina-se a falsear esse tipo de relações econômicas. A fraude e a desonestidade insinuam-se nas trocas e desnaturam-nas. "Quando não mais se pode comprar nem vender", diz Calvino, "a companhia dos homens é como que destruída"13.

Ora, os autores de tal subversão são acima de tudo os especuladores e os açambarcadores, já numerosos no século XVI, que, por todos os meios artificiais, entravam a circulação dos bens e dos produtos, causando-lhes a raridade e aumentando destarte os lucros.

11. Nas situações de penúria e de monopólio, um controle de preços é indispensável.

Enquanto o custo de vida crescia a cada dia na cidade de Calvino, os negociantes estocavam os bens de primeira necessidade para lucrar com a alta dos preços. Calvino denunciou com vigor tais práticas especulativas. Os monopolizadores e os especuladores, proclama com intrepidez profética, não são nada menos que assassinos, porque privam os mais pobres dos bens indispensáveis à sua subsistência. "Hoje", dizia, "vemos diante da carestia que negociantes haverá... que manterão seus armazéns fechados: é como se degolassem os pobres, quando os esfomeiam desse modo"14. Portanto, no pensamento do reformador, a liberdade do comércio, a livre troca, é um grande bem, mas sob a condição de que se lhe combatam os abusos. Em tempos de penúria sobretudo, devem ser controlados por legislação em conformidade com ética severa e lúcida.

Recordemos que, na mesma época em que haviam adotado a Reforma, as autoridades da futura cidade de Calvino haviam instituído em Genebra, já antes de sua chegada, certo controle dos preços nos tempos de penúria para os bens de primeira necessidade: pão, carne, e vinho. Este controle do Estado protegia a justa distribuição dos bens indispensáveis entre todos os cidadãos e combatia o açambarcamento, a especulação e os monopólios, sempre abundantes nas ocasiões de crise e em todo o setor castigado pela escassez.

12. A poupança e o empréstimo a juros.

Examina-se agora um dos assuntos mais característicos e mais controversos do pensamento social e do alcance concreto da ética calvinista. Ele ressalta o parentesco estreito, mas ao mesmo tempo a distância crescente, entre o Cristianismo reformado e o capitalismo, considerados em sua evolução histórica.

O reformador soube discernir de forma absolutamente nova, com referência às antigas concepções medievais, o papel útil e necessário, não só das trocas econômicas, como se acaba de lembrar, mas também das atividades financeiras, sob a condição, porém, de que estas fossem igualmente subordinadas a uma ética severa, assim como a uma legislação correspondente.

Calvino e Bucer são, com efeito, os primeiros teólogos cristãos da era moderna que, graças à grande perspicácia na análise dos mecanismos econômicos e inabalável vontade de submetê-los aos imperativos de ética que reflita a vontade de Deus, legitimaram moralmente a prática do empréstimo a juros. Cercaram-no, porém, de muitas precauções e restrições, a fim de impedir que se transforme em fonte de destruição das relações sociais e das liberdades humanas. Recomendaram ao legislador assegurar, mediante lei, essa autoridade, para evitar que a liberdade desenfreada de uns destrua a preciosa liberdade dos outros.

Em conformidade com o método reformado, Calvino interroga a Bíblia para conhecer os desígnios de Deus nessa matéria.

Constata que os juros nela são severamente condenados. Por quê?

Trata-se, em primeiro lugar, de prevenir abusos da humanidade desnaturada, sempre ávida por lucros, seja qual for o preço pago pelos mal-aquinhoados. Por isso o ensinamento bíblico recomenda prioritariamente o empréstimo desinteressado, isto é, o empréstimo sem remuneração. Quem pode sair em socorro de alguém em dificuldade, mediante empréstimo pecuniário, deve fazê-lo sem pactuar juros. É empréstimo gratuito, sinal autêntico do amor, fruto da fé naquele cujo amor é gratuito. Assim, o lucro auferido de empréstimo assistencial é usura injusta, doutrina o reformador.

Que lição, transposta para a atualidade, a propósito de nossas relações atuais entre nações ricas e nações pobres, e entre países credores e países devedores! Devemos também extrair daí ensinamento pessoal15.

Calvino questiona, em seguida, sobre a extensão que convém atribuir à interdição bíblica dos juros. Aplica-se ela a todas as formas de juros?

Para responder a esta questão, o reformador não se contenta, de modo algum, com um literalismo muito freqüente na interpretação das Escrituras, que consiste em repetir determinada prescrição bíblica aplicando-a pura e simplesmente a situações históricas novas. Analisa a realidade econômica contemporânea e compara-a com a antiga economia dos tempos bíblicos. E constata: quando a Bíblia fala de juros ou de usura, não se refere ao fenômeno relativamente recente do empréstimo produtivo. Na economia a longa distância, a economia atlântica em pleno desenvolvimento no início do século XVI, importa distinguir o empréstimo assistencial do novo tipo de empréstimo que exige a expansão dos mercados. Um empréstimo produtivo é um capital necessário à realização de um trabalho remunerador. Se, por exemplo, argumenta Calvino, empresto a um agricultor terra para que a cultive para seu benefício, o aluguel que obtenho desse empréstimo não é a remuneração de um empréstimo assistencial. Não lhe inflijo prejuízo algum exigindo esse aluguel. Retirará essa importância da receita oriunda do trabalho executado graças ao empréstimo dessa terra. Reparte comigo essa receita (à taxa pactuada). Por que não se daria a mesma coisa com o lucro daquele a quem empresto capital que expandirá com seu empreendimento?

A tradição antiga assumida pela Igreja Romana condenava qualquer interesse porque, dizia Aristóteles, "o dinheiro não produz dinheiro". Calvino propõe distinguir entre empréstimo para o consumo que, sendo empréstimo assistencial deve ser gratuito, e empréstimo para a produção, gerador de novos produtos. Além disso, nota-o, proibindo-se quaisquer juros, dissuadem-se os emprestadores honestos, úteis ao desenvolvimento econômico legítimo, e estimulam-se involuntariamente os usuários que se aproveitam de tal interdição para aumentar seus lucros, por causa dos riscos adicionais que correm.

Dito isso, Calvino não cerra os olhos para os perigos de liberalização indiscriminada do empréstimo a juros. Discerne ao contrário, de maneira profética, todos os abusos que a humanidade desnaturada, pouco preocupada com o respeito a uma ética adequada, pode extrair de uma liberdade abusiva nesse domínio. Cerca, também, sua legitimação dos juros com numerosas restrições. Trata-se de eliminar os abusos sempre ameaçadores do poder do dinheiro, abandonado a uma liberdade desenfreada, em particular com relação aos trabalhadores, cujo trabalho se acha na origem do ganho realizado pelo capital emprestado16.

13. Contra os abusos do poder do dinheiro e a hegemonia do capital sobre o trabalho.

Para que a liberdade necessária e mesmo indispensável ao desenvolvimento econômico seja benéfica a todos, é preciso, portanto, dominá-la. Convém discernir os abusos que a ameaçam e desenvolver ética adequada.

Eis uma restrição importante que o reformador indica para a legitimidade do empréstimo a juros. Ela faz refletir, porque representa salvaguarda de excepcional gravidade. Os juros, diz o reformador, não devem ser tolerados se o mutuante não ganhou, com a soma emprestada, o valor desses juros. Noutros termos: a remuneração do trabalho tem prioridade sobre a do capital.

Que extraordinária repercussão poderia obter tal ética, se fosse aplicada com discernimento, especialmente em período de crise e desemprego, em regime verdadeiramente liberal, no sentido nobre do termo, a saber, generoso e respeitoso da dignidade de cada indivíduo. Deveria existir pelo menos paridade entre os direitos do trabalho e os do capital, na distribuição do produto de suas agregações comuns (Falar-se-á novamente disso, no capítulo VII, a respeito da democratização da economia).

Além disso, acrescenta o reformador, todos os juros excedentes à taxa normal transformam-se em usura e devem ser condenados. Mas, o que é a taxa normal?

A tal questão como a tantas outras, Calvino recusa-se a dar resposta que decorra de moralismo ou causuística, que favoreça a preguiça moral e espiritual. A primeira norma a tomar em consideração, diz, é a caridade, no sentido principal do termo, a saber, o amor ao próximo. É preciso não se aproveitar da situação de monopólio e, sobretudo, da penúria, para explorar seu próximo mediante a elevação desavergonhada das taxas de juros.

Em seguida, com espírito de análise que ultrapassa o estado da ciência econômica de seu tempo, Calvino faz notar que a taxa de juros exerce influência sobre o custo de vida, pois que os juros são pagos no final, em grande parte ao menos, pelo consumidor. Importa, portanto, levar em conta este fator, quando se legisla sobre os limites da taxa de juros.

A preocupação com anular os efeitos perversos do dinheiro caro sobre a vida pública inspirou constantemente as autoridades religiosas, políticas e econômicas da cidade de Calvino. Importantes debates, que deveriam erigir-se em exemplos, entre todas as partes interessadas, reuniam, na busca de uma solução justa, magistrados, negociantes e pastores. Fixavam conjuntamente o nível da taxa de juros legítima, de forma pragmática, tomando em consideração tanto exigências éticas quanto interesses contraditórios da vida em sociedade. E retornavam a uma mesma discussão, nem sempre fácil, à proporção que as circunstâncias se alteravam. A negociação entre os representantes das diversas partes interessadas era princípio de ética válido tanto para a vida pública quanto para a particular.

Foi dito, não sem razão, que essa supressão da proibição do empréstimo a juros pela ética do Cristianismo reformado constituiu o desvio supremo da história economia ocidental. Convém, todavia, que se sublinhe que dita liberação não significava, no espírito desses protestantes, a liberalização total dessa prática. Às restrições que o próprio reformador indicara para contê-la e moderá-la, seus herdeiros acrescentaram reservas que bem assinalaram sua preocupação com aplicar e viver concretamente a ética cristã que proclamavam. Quando os negociantes de Genebra projetaram fundar um banco para facilitar a aplicação de sua poupança, com taxa legal equivalente a 10% (de acordo com nossa maneira atual de calcular), taxa que era muito inferior à taxa permitida alhures, os pastores opuseram-se sob a liderança de Théodore de Bèze. Lembravam-se das advertências severas do Evangelho a respeito do poder do dinheiro (Mamom) transformado em força autônoma, anônima, sem a subordinação a uma ética rigorosa. Recordavam-se de seu mestre, que rejeitara expressamente a idéia de que alguém pudesse exercer "a profissão da usura". Importava evitar entregar-se às especulações financeiras jogando no anonimato do dinheiro, dessa forma endiabrado.


Notas

1. Herbert Luthy, em Cahier Vilfredo Paretto, no. 2, Genebra, 1963, nota 27, p. 43.

2. João Calvino, Institution Chrétienne (1560) t. II, c. VIII, par. 28 e Commentaire N.T., Epître aux Colossiens, c. I, v. 10.

3. J. Calvino, Commentaire N.T., Thessaloniciens, c. 3, v. 10.

4. Ibid.

5. J. Calvino, Sermon CXXXVII sur le Deutéronome, c. 24, vv. 1 a 6.

6. J. Calvino, Sermon CXLII sur le Deutéronome, c. 25, vv. 1-4.

7. Ibid.

8. Ler-se-á com interesse sobre esses assuntos a recente obra de Liliane Mottu-Weber: L'économie genevoise de La Réforme à l'Ancien Régime: XVIe-XVIIIe siècle. Genebra, 1990.

9. J. Calvino, Commentaire N.T., Mateus, c. 20, v. 1.

10. Ibid.

11. J. Calvino, Sermon CXL sur le Deutéronome, c. 24, vv. 14-18.

12. J. Calvino, Commentaire N.T., Tiago c. 5, v. 4.

13. J. Calvino, Commentaire Moïse, Lévitique, c. 19, v. 5.

14. J. Calvino, Leçons sur douze petits prophètes, Amos, c. 8, v. 5.

15. Cf. A. Lombard e A. Perrot, Argent sur table, dela possession au Don, Lausanne, 1989.

16. Encontrar-se-ão nesta obra exposições sumárias de estudos mais completos do autor, especialmente: La pensée économique et sociale de Calvin, Genebra, 1959; L'humanisme social de Calvin, Genebra, 1961; L'homme et la femme dans la morale calviniste, Genebra, 1963; Calvin, prophète de l'ere industruielle, Genebra, 1964.

A força oculta dos protestantesAndré Biéler, A força oculta dos protestantes, Editora Cultura Cristã, págs. 123 a 135.

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