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Vida e obra de Ireneu de Lião

Escrito por  Gustavo

Ireneu de Lião

Já cedo em sua história, a igreja enfrentava inúmeros desafios. Além da perseguição do império, o desafio dos judaizantes, a igreja primitiva começava a enfrentar um grupo dissidente, que posteriormente ficaria conhecido como "os gnósticos". Este grupo não era uniforme. Havia vários mestres gnósticos, e cada um deles defendia uma doutrina específica. O que tinham em comum era o fato de dizerem haver recebido um conhecimento (gnosis) secreto do próprio Cristo ou dos apóstolos, de onde veio seu nome. Mistificavam a leitura das Escrituras, quando não elaboravam seus próprios escritos, atribuindo a autoria a algum apóstolo.

De fato, Eusébio de Cesaréia em sua História Eclesiástica, menciona o surgimento dos gnósticos bem no início da história cristã. Segundo ele, o próprio apóstolo João teria convivido com eles, mais precisamente um mestre gnóstico chamado Cerinto ("História Eclesiástica" Livro 3, Capítulo 28). Provavelmente, alguns versículos no evangelho de João e em suas epístolas tenham sido escritas contra os gnósticos (Jo 1:14; 1 Jo 4:2,3{).

Ireneu de LiãoÉ neste cenário, que surge um personagem que apesar de ser muito importante, pouco se sabe sobre sua vida: Ireneu, bispo de Lião (a atual cidade de Lyon, na França). Não se sabe quando nasceu. Alguns defendem que tenha nascido entre 115 e 125 D.C., outros entre 130 e 142 D.C. O que se sabe, é que nasceu na Ásia menor, talvez próximo de Esmirna, onde desde de jovem, conviveu com o bispo Policarpo (Contra Heresias, Livro 3, capítulo 3, parágrafo 4; História Eclesiástica, livro 5, capítulo 20). Por isto, Ireneu tem grande estima por Policarpo, e provavelmente suas repetidas menções ao "presbítero" (ancião) se refiram a Policarpo. Policarpo havia sido discípulo de João, como atesta Eusébio, Papias e o próprio Ireneu. Isto ajudaria Ireneu, futuramente, a desmascarar os gnósticos que afirmavam ter recebido ensinos secretos do apóstolo João.

Não se sabe por que Ireneu foi para a Gália. Sabe-se que por volta de 177, está nesta região. Neste ano, a igreja de Lião sofre o martírio sob o reinado de Antonino. Ireneu teria ido a Roma nesta época, para levar uma carta ao bispo da cidade ("História Eclesiástica", livro 5, capítulo 4). Enquanto estava fora, os cristãos de Lião sofreram martírio. Segundo o historiador eclesiástico, Roger Olson, os métodos empregados para matar e torturar cristãos eram engenhosos e cruéis. Entre os vários métodos, havia o de prender vários cristãos em uma sala sem janelas, e fechando as portas, deixava-os morrer sufocados. Outro método era costurá-los em peles frescas de animais, e deixá-los ao sol para morrerem sufocados. Neste genocídio, morre também o bispo da cidade, Potino, deixando o episcopado para Ireneu.

É na época que Ireneu estava em Roma, que ele conheceu os gnósticos, discípulos de Valentino. Abismado com o crescimento em meios cristãos do gnosticismo, Ireneu se põe a estudar e refutar o movimento. É neste momento, que Ireneu se torna o primeiro pai da igreja que se dispõe a escrever sobre a doutrina cristã de forma detalhada. Nasce então, as bases da teologia.

Neste livro, Ireneu afirma a sua descendência apostólica, pois foi discípulo de Policarpo, que por sua vez, foi discípulo do apóstolo João. Se houvesse algum ensinamento secreto, como os gnósticos diziam, ele deveria ser o primeiro a saber. Com tom irreverente, desmascara os gnósticos em seus ensinos. Roger Olson destaca um trecho onde ele faz uma paródia da dita visão cristã da criação:

Oh! Nossa! Podemos muito bem fazer essas exclamações trágicas diante de tamanha audácia em criar nomes que ele apresentou sem enrubescer, em arquitetar uma nomenclatura para seu sistema de falsidades. Pois quando declara: "Há um certo Proarqué que existia antes de todas as coisas, que está além de toda a compreensão, a qual chamo Henotés" está mais do que evidente que ele confessa que as coisas que acabou de dizer são invenções suas e que ele próprio atribuiu nomes a esse conjunto de coisas jamais sugeridos por qualquer outra pessoa. Está claro também que foi ele mesmo quem teve audácia suficiente para criar esses nomes; de modo que, se ele não tivesse aparecido no mundo, a verdade seria desprovida de nome. Mas, nesse caso, nada impede que qualquer outro, ao tratar do mesmo assunto, atribua nomes de uma forma semelhante à seguinte: Existe certo Protoarqué, real, que está além de toda a compreensão, um poder que existia antes de qualquer matéria e se estendia no espaço em todas as direções. Mas junto com ele existe um poder que chamo Abóbora; e junto dela existe um poder que chamo Vazio Total. A Abóbora e o Vazio Total, sendo um, produziram (porém não produziram simplesmente no sentido de existir separadamente deles) uma fruta, visível em todos os lugares, comestível e deliciosa, que a linguagem das frutas chama Pepino. Junto com o Pepino existe um poder da mesma essência, que chamo Melão. Esses poderes, a Abóbora, o Vazio Total, o Pepino e o Melão, produziram o restante da multidão dos melões delirantes de Valentino. [...] Se qualquer um pode atribuir nomes a seu bel-prazer, o que nos impedirá de adotar esses nomes, por serem muito mais críveis [do que os outros], além de serem de uso geral e compreendidos por todos?

Justo L. González, em seu livro "Uma história ilustrada do Cristianismo", faz um belo resumo da teologia de Ireneu:

Em resumo, a teologia de Ireneu consiste em uma grandiosa e amplíssima visão da história, de tal modo que os propósitos de Deus vão se cumprindo através dela. Nessa história, o ponto central é a encarnação de Jesus Cristo, não simplesmente porque Ele tenha vindo corrigir a carreira torcida da humanidade, mas também e, sobretudo, porque desde o próprio momento da criação Deus já projetava a encarnação como o ponto culminante de sua obra. O propósito de Deus é unir-se ao ser humano, e isto ocorreu em Jesus Cristo de um modo inigualável.

Roger Olson, em "História da Teologia Cristã", por outro lado, destaca na teologia de Ireneu, algo que marcou ainda mais a teologia primitiva:

O ataque de Irineu ao gnosticismo não teve nada da abordagem fria e racional que as pessoas da atualidade esperariam de um bispo ou teólogo. Ele considerava o gnosticismo estulto e sinistro e queria desmascará-lo de uma vez por todas como uma corrupção completa do evangelho disfarçado em "sabedoria superior para pessoas espirituais". Para tanto, Irineu passou meses e anos estudando pelo menos vinte mestres gnósticos distintos e suas respectivas escolas. Descobriu que o mais influente era o gnosticismo valentiniano, que se tornou popular entre os cristãos de Roma mediante os ensinos de um líder gnóstico chamado Ptolomeu. Por isso, concentrou sua atenção em expor esse grupo como ridículo e falso na esperança de que todos os outros fossem esmagados com o peso dessa queda.A abordagem de Irineu na crítica ao gnosticismo em "Contra as Heresias" foi tripla. Em primeiro lugar, procurou reduzir ao absurdo a cosmovisão gnóstica, ao demonstrar que boa parte dela era uma mitologia sem qualquer fundamento a não ser a imaginação. Essa primeira estratégia pretendia desmascarar as contradições internas do gnosticismo e sua incoerência básica. As verdades que pregava eram conflitantes entre si. Em segundo lugar, tentou demonstrar que a reivindicação dos gnósticos de ter uma autoridade que remontava a Jesus e aos apóstolos era simplesmente falsa. Finalmente, entrou em debate com a interpretação gnóstica das Escrituras e demonstrou que era irracional e até mesmo impossível. Há várias suposições que explicam a polêmica tentativa de Irineu de desmascarar o gnosticismo. Obviamente, ele acreditava que exercia um papel e uma posição especiais, por ter sido instruído no cristianismo por Policarpo que, por sua vez, teve João como mestre. Muitos gnósticos alegavam que João fazia parte de um grupo seleto de discípulos de Jesus que receberam do Salvador "ensinos secretos" não revelados à maioria dos cristãos por não estarem espiritualmente aptos a entendê-los. Embora pudessem enxergar indícios da própria cosmovisão e evangelho nos escritos apostólicos, tinham que confiar em uma tradição oral secreta como a fonte principal de sua autoridade. Irineu deduziu que, se tivessem existido tais ensinos, Policarpo teria tomado conhecimento deles e lhe contado. O fato de nenhum dos bispos dos cristãos reconhecerem nem aceitarem esses ensinos acabou com as reivindicações dos gnósticos. Outra suposição básica que subjazia à crítica ao gnosticismo era a de que os gnósticos seriam os responsáveis por romper a unidade da Igreja. Eram eles os cismáticos. Irineu atribuía grande valor à unidade visível da igreja, que consistia na comunhão dos bispos nomeados pelos apóstolos. Os gnósticos estavam fora dela e agiam como parasitas. Para Irineu e muitos dos seus leitores, esse era um argumento forte contra eles. [...] Todas as principais seitas e escolas do gnosticismo desprezavam a criação física e negavam sua origem no Deus supremo da bondade e da luz. A maioria, incluindo-se a escola de Valentino, apresentava níveis de emanações ("éons" e "arcontes" ) do Deus de puro espírito e luz que gradualmente se desviavam e, de alguma forma, acabavam criando o universo material, inclusive os corpos humanos nos quais as centelhas do divino (almas, espíritos) se encontram enredadas e presas. Para rebater essa teoria da criação, Irineu afirmou a doutrina cristã de Deus como criador e redentor da existência material e da espiritual. Contra os gnósticos, citou João 1:3 e outras passagens do AT e dos apóstolos (que posteriormente seriam incluídos no NT) que tratam de Deus como o criador de todas as coisas mediante o seu Verbo e o seu Espírito e desacreditou as interpretações que fizeram das referências bíblicas aos anjos, aos poderes espirituais e aos principados, atribuindo-lhes um caráter fantasioso e absurdo. [...] Os gnósticos pensavam na obra de Cristo sob um prisma puramente espiritual e negavam a encarnação. Para eles, Cristo, o redentor celestial, nunca teve uma existência em um corpo humano. Ele veio pelos níveis dos "éons" e "arcontes" e apareceu na forma humana sem assumir a natureza física ou entrou no corpo de um ser humano chamado Jesus de Nazaré a fim de usá-lo como instrumento para falar a respeito da origem espiritual da alma humana. Em qualquer dessas versões da cristologia gnóstica, a obra de Cristo não requeria a encarnação. Sua missão era simplesmente revelar uma mensagem aos espíritos. A dimensão material e física não se relacionava com isso e, quando Jesus foi crucificado, Cristo não estava nele, nem com ele. Os gnósticos excluíam da sua soteriologia (doutrina da salvação) a vida e a morte histórica e física de Jesus. Irineu procurou demonstrar que o evangelho da salvação ensinado pelos apóstolos e transmitido por eles centralizava-se na encarnação, a existência humana do Verbo, o Filho de Deus, em carne e osso. Por isso, enfatizava todos os aspectos da vida de Jesus como necessários para a salvação. A obra de Cristo em nosso favor foi muito além de seus ensinamentos e estendeu-se à própria encarnação. Para Irineu (e para a maioria dos pais da igreja depois dele) a própria encarnação é redentora e não meramente um passo necessário em direção aos ensinos de Cristo ou ao evento da cruz. Pelo contrário, a humanização do Filho de Deus - o Verbo (Logos) eterno de Deus experimentando a existência humana - é o que redime e restaura a humanidade caída se ela se permitir. Essa idéia ficou conhecida como a encarnação salvífica e foi crucial para o curso de toda a teologia depois de Irineu. É por isso que, sempre que surgia uma teologia que de alguma forma ameaçava a encarnação de Deus em Jesus, os pais da igreja reagiam tão fortemente. Qualquer ameaça à encarnação, por menor que fosse, era vista como uma ameaça à salvação. Se Jesus Cristo não fosse verdadeiramente humano bem como verdadeiramente divino, a salvação seria incompleta e impossível. A redenção, na sua inteireza, repousa na realidade do nascimento de Cristo em carne e osso, de sua vida, seu sofrimento e sua ressurreição, além do seu eterno poder e divindade.[...]Os gnósticos não ofereceram esperança alguma para a raça humana como um todo e nem para os seres humanos individualmente. Somente os espíritos - e assim mesmo, poucos - tinham alguma esperança de serem transformados e somente mediante a gnosis (conhecimento). Irineu implantou profundamente na consciência cristã a crença e esperança em Jesus Cristo como transformador de toda a raça humana mediante sua fusão com a humanidade na encarnação.

"Roger C. Olson, em "História da Teologia Cristã", Ed. Vida, págs. 69/74"

Mais tarde, quando Vítor era bispo de Roma (189-198), intervém na controvérsia sobre o dia da Páscoa, exortando este bispo à paciência e à compreensão com os bispos da Ásia. Nesta época, os bispos da Ásia observavam a Páscoa segundo o costume judaico, já Vítor queria que todas as igrejas observassem a Páscoa no domingo, dia da ressurreição de Cristo. Este é seu último ato conhecido. A notícia de seu martírio é tardia.

Obra

Ireneu de LiãoDas obras de Ireneu, apenas duas chegaram completas a nós. A primeira, é seu Contra Heresias (Adversus haereses), conservado inteiro unicamente em uma tradução latina muito literal (Ireneu escrevia em grego, apesar de viver no lado latino do império), uma tradução armênia dos livros 4 e 5, numerosos fragmentos em siríaco e diversos fragmentos em grego, encontrados em citações nos autores posteriores, e nas cadeias (Ireneu era um autor muito lido). A segunda obra é sua Demonstração da pregação apostólica, que foi encontrada uma tradução armênia apenas em 1904 em Erevan, na Armênia. É um breve compêndio da fé cristã com caráter catequético, um resumo de seu Contra Heresias.

Encontra-se também na obra de Eusébio de Cesaréia, fragmentos de duas cartas suas, uma para Florino, outra para Vítor.

Segundo Eusébio, suas obras foram:

  1. Contra Heresias.
  2. Acerca da Soberania, dirigida a Florino.
  3. Acerca do Cisma, dirigida a Blasto.
  4. O Tratado sobre o Ogdôade, dirigida ao mesmo Florino;
  5. Do Conhecimento, que era um tratado contra os gregos;
  6. Discussões sobre a Epístola aos Hebreus;
  7. Sabedoria de Salomão.

Bibliografia

  1. Roger Olson, História da Teologia Cristã.
  2. Justo L. González, Uma história ilustrada do Cristianismo

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