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Vida e obra de Efrem, o sírio

Escrito por  Hélio

Efrem, o sírio

Nascido de pais cristãos, provavelmente em Nísibe, Síria (atual Nusaybin, na Turquia, fronteira com a Síria), por volta do ano 306 d. C., educou-se desde tenra idade com o bispo Tiago (303-338), primeiro bispo da cidade, que foi seu tutor e que participou do Concílio de Nicéia no ano 325. Com ele aprendeu a defender a ortodoxia da Igreja, o que certamente influenciou na sua forte formação anti-ariana, que lhe seria de grande utilidade no fim da vida. Nasceu e habitou numa região limítrofe do império romano, onde havia uma comunidade judaica influente, profundo contato com a cultura mesopotâmica, e em que o siríaco, um dialeto aramaico, era língua corrente e o cerco dos exércitos persas uma constante ameaçadora. O siríaco era não só o alfabeto e o dialeto popular, mas também uma versão literária do aramaico (uma forma tardia deste idioma), em que Efrem escrevia e no qual muitos manuscritos do Novo Testamento - e dos Pais da Igreja - foram preservados. Sua ordenação ao sacerdócio teria se dado no ano da morte de Tiago, em 338 (que o havia nomeado "intérprete", ou seja, comentador das Escrituras), e continuou servindo aos sucessores do antigo bispo como professor de doutrina, poesia e canto, principalmente na Escola de Nísibe, fundada em 350, terminando por ser deportado (com toda a comunidade cristã da cidade) para Edessa (atual Şanlıurfa, na Turquia), no ano 363, por conta da rendição daquela cidade aos sassânidas, dinastia real que governava a Pérsia na época e que vivia em guerra contra os romanos. Incomodados com o sucesso do cristianismo na Mesopotâmia, os persas queriam, também, aproveitar aquele momento para reviver o zoroastrismo como reforço da identidade de seu povo, e a presença cristã na recém-tomada Nísibe era uma ameaça real aos seus planos. Aproveitaram-se da investida do imperador romano Juliano, "o Apóstata", de abril a 26 de junho de 363, dia em que foi morto na batalha de Samarra, não muito longe de Nísibe. Impedido de atravessar de volta o Rio Tigre, Joviano, seu sucessor (eleito pelo exército em retirada), para evitar o extermínio do restante das tropas e obter a paz com os persas, aceitou condições humilhantes e cedeu-lhes a cidade de Efrem, que dedicaria ao imperador morto o seu "Hymni contra Julianum". Temeroso da represália persa, Joviano, cristão niceno, conseguiu fazer com que a comunidade cristã de Nísibe pudesse abandonar a cidade. Assim, a Escola de Nísibe foi transferida para Edessa, o que ajudaria esta cidade a legar à posteridade os manuscritos siríacos mais antigos conhecidos, do ano 461 e 462, aproximadamente, contendo boa parte dos escritos patrísticos. Deve-se registrar, entretanto, que outra comunidade cristã floresceria em Nísibe algumas décadas depois, só que seria fortemente influenciada pelos nestorianos e monofisitas, o que traria sérias complicações ao cristianismo nos séculos seguintes.

Há controvérsias, ainda não totalmente pacificadas, sobre se Efrem teria sido, de fato, um monge e um anacoreta, ou seja, alguém que se havia dedicado à vida monástica extrema, como fizeram muitos padres do deserto. Estudos recentes demonstram que Efrem teria apenas consagrado sua vida a Cristo mediante votos de abstinência e castidade, mas não teria seguido estritamente o monaquismo, como muitos de sua geração fizeram. Teria feito parte, portanto, de um grupo de ascetas de tradição siríaca chamado "Filhos da Aliança", onde teria servido sob o título de diácono. Ao que tudo indica, as regiões desérticas da Síria já eram habitadas e percorridas por anacoretas (antes, um fenômeno tipicamente egípcio), e, mesmo que Efrem não tenha sido um deles, chegou certamente a conhecê-los, pelo que compôs em siríaco o "Elogio dos Solitários da Mesopotâmia":

Vamos ver suas moradas, onde se alojam como mortos em seus sepulcros.

Vamos ver seu corpo e consideremos que eles somente o vestiram e ornaram com seus cabelos...

Vejamos sua bebida, que está sempre misturada com suas lágrimas,

Vejamos sua mesa, sempre coberta de ervas selvagens,

Olhai as pedras que eles põem sob a cabeça...

Se um ladrão os avista, ele se lança ao chão para venerá-los,

Se as bestas ferozes vêem seus sacos, elas fogem imediatamente como diante de alguma coisa espantosa e prodigiosa...

Eles esmagam com os pés toda sorte de serpentes...

Moram em cavernas e nos ocos dos rochedos como em belas câmaras.

Trancam-se nas montanhas e nas colinas como entre paredes e muralhas inacessíveis.

A terra é sua mesa.

As ervas selvagens que ela produz são seu alimento costumeiro.

(...)

Vão errantes pelos desertos com as bestas ferozes, como se eles próprios fossem feras.

Voam sobre as montanhas como os pássaros.

Pastam com os bichos selvagens como os cervos.

Sua mesa está sempre posta, sempre coberta, pois se alimentam de raízes e de ervas que o sol produz naturalmente.

Os desertos do Oriente Médio e do Norte da África eram povoados por místicos de toda ordem na época. Gente que radicalizou a mensagem do evangelho e levou-a aos extremos do ascetismo mais rigoroso. Essas características da época ajudam a entender o fato de que muitas lendas circulam, desde o século IV, a respeito da vida de Efrem. É difícil separar o que é falso e verdadeiro em sua biografia e na sua obra. Algumas lendas são mais terrenas, como uma viagem pelo deserto do Egito, repleto de anacoretas à época, e um suposto encontro com Basílio Magno em Cesaréia. Não há qualquer evidência de que isto tenha acontecido. Outras lendas são mais etéreas, como uma série de visões de anjos que lhe são atribuídas. O fato é que Efrem aproveitou o seu período em Nísibe, principalmente, para produzir a maior parte da sua obra de hinos doutrinários, teológicos, litúrgicos, e ascéticos. Enquanto Nísibe resistiu, a cidade foi o front avançado do império romano na Pérsia, e a Igreja - e sua literatura – se desenvolveram à margem das grandes tradições latinas e gregas. A preocupação maior dos cristãos era refutar as idéias de Marcião e de Mani (o maniqueísmo), que campeavam em terras persas, bem como a Bardesanes (154-222), o primeiro escritor da Igreja Síria, a quem Efrem considerava o pai espiritual daqueles. Por não dominar o idioma grego, nem ser profundamente influenciado pela cultura helênica, Efrem desenvolveu uma hermenêutica toda especial. O Dicionário Patrístico e de Antiguidades Cristãs assim a descreve:

Na consideração místico-poética contemplativa do mistério de Deus, embora transmita um conhecimento de segunda mão de alguns temas estóicos e faça uso às vezes de termos que se tornarão mais tarde técnicos, como kyana (natureza) ou qnoma (pessoa, hipóstase). E, se isola num agnosticismo radical que se reflete no silêncio e na humildade (harmonia interior) e que o preserva dos desvios modalistas, triteísta e subordinacionista, e que o fará ser adotado como pai espiritual das diversas facções da igreja nos sécs. V e VI. O núcleo de sua busca de fé, preocupada em preservar a integridade da liberdade humana e não simplicista, pois recusa desde o início o "fundamentalismo" escriturístico dos especulativos, reside na abertura semântica, na polissemia dos símbolos, dos nomes divinos tirados não apenas das Escrituras (Rei, Pastor, Esposo), da antiga Mesopotâmia (Artífice, Físico, Remédio [fármaco] vital), mas também da natureza. De fato, a perfeita harmonia de Deus e de sua criação, que se radica no mistério "dialético" da encarnação do Filho, abre a porta a esta experiência analógica de Deus (R. Murray chega mesmo a ver em Efrem o precursor da filosofia de P. Ricoeur). "Este Jesus multiplicou para nós os símbolos; caímos num mar de símbolos, que me apresentam em parábolas a ressurreição dos mortos através de todo tipo de símbolos e de figuras" (Carmina Nisibena 39,17). E descreve, portanto, a Trindade mediante a imagem do sol/fogo, raio, calor; o paraíso com a imagem da arca de Noé ou do Monte Sinai ou ainda com a das diversas facetas do homem, semelhança de Deus (corpo, alma e espírito). Fala das relações do Pai e do Filho como aquelas entre a árvore e o fruto, fala do Espírito que esvoaça sobre os sacramentos (batismo, ordenação, eucaristia), da Economia da salvação como a entrada que se estende "da árvore à cruz, do lenho ao lenho, do Éden a Sião, de Sião à Santa igreja e da Igreja ao Reino" (H. de Fide 26,4).

Tributário das influências dos rabinos judeus, da filosofia grega e das tradições simbólicas mesopotâmicas, vivendo a maior parte da vida numa encruzilhada limítrofe de tantas culturas que se entrelaçavam, a obra de Efrem tem o mérito de ser original, sem perder a fidelidade à ortodoxia da igreja. Já em Edessa, Efrem compôs seus Hinos de Fé anti-arianos (Hymni de Fide adversus scrutatores), e o Comentário ao Diatessaron (uma espécie de Harmonia dos Evangelhos em siríaco, do séc. II), de Taciano. Combate sem trégua as heresias que infestavam a nascente igreja cristã. Reúne em torno de si muitos jovens persas que vêm aprender com o mestre que se torna o maior expoente daquela que ficaria conhecida como a Escola dos Persas. Dava especial ênfase às palavras e aos símbolos. Amante da música, interessava-lhe sobremaneira a linguagem própria das palavras e dos sons e atribui-se a ele a frase: "Deus revestiu-se de nossa linguagem, de modo a poder vestir-nos com Seu modo de vida". No "Comentário ao Diatessaron" 7:22, Efrem afirma que:

"Se as palavras tivessem somente uma única perspectiva, o primeiro intérprete a teria encontrado, e os outros ouvintes não teriam o trabalho duro nem o prazer da sua própria interpretação. Entretanto, todas as palavras do Senhor têm as suas imagens, e cada uma dessas imagens tem os seus muitos componentes, e cada um desses componentes tem a sua própria especificidade e forma. E cada pessoa ouve de acordo com a sua capacidade, e interpreta de acordo com aquilo que lhe está sendo dado."

Efrem, o sírioEfrem morreria em Edessa, no dia 9 de junho de 373. Sintomático foi o fato de que, somente após sua morte, ainda naquele exato ano, o imperador ariano Valente mandou para o exílio o clero e os fiéis ortodoxos. Com a sua morte, 5 anos depois, os ortodoxos puderam voltar a Edessa. A obra de Efrem, entretanto, mais do que apenas resistir à passagem dos séculos, conseguiu ser cada vez mais respeitada e difundida. Mesmo tendo sido concebida num contexto à margem do Império e da cultura greco-romana, sua obra pautou-se pela criatividade e pelo respeito à ortodoxia da Igreja. Assim, mesmo em vida, Efrem já obtia o reconhecimento dos cristãos espalhados pelo mundo conhecido de então, o que é um fato único na era primitiva da Igreja, já que todos os outros Pais não tiveram em vida um reconhecimento tão unânime e universal como Efrem teve. Também ficou conhecido como o "Profeta dos Sírios" e a "Cítara do Espírito". Santo Jerônimo incluiu Efrem em seu livro De viris illustribus, dizendo que as obras do sírio eram lidas na igreja após a leitura das Escrituras, e que ele próprio teria lido, na versão grega, o seu livro sobre o Espírito Santo. No começo do século V, o escritor Sozôlido diz que Efrem havia escrito mais de 3 milhões de linhas. Tal foi a sua reputação, que muitos dela quiseram se aproveitar, produzindo obras apócrifas atribuindo-as a Efrem. Muitas delas eram escritas em grego, sem que fossem versões do siríaco, única língua em que Efrem havia escrito, daí ter ele ficado conhecido também como Ephraem Graecus. Mesmo assim, estima-se que cerca de 400 dos seus Hinos chegaram até nós. Muitos deles continuam sendo utilizados na liturgia da Igreja Ortodoxa. Em 5 de outubro de 1920, o papa Bento XV incluiu-o no rol dos Doutores da Igreja, o que o coloca entre os grandes Padres da Igreja. Recentemente, o papa Bento XVI tem-se referido a Efrem com uma certa freqüência, talvez para demonstrar seu desejo de ligar-se ao papa anterior de mesmo nome, bem como à tradição ortodoxa da Igreja. Renova-se, no cristianismo, um interesse na vida e na obra de Efrem, o Sírio. Novos estudos continuam sendo desenvolvidos para recuperar e entender melhor a obra magistral deste grande servo do Senhor.

Um pouco mais de Éfrem, o sírio

Efrem, o sírioPara evitar que seus discípulos perguntassem o tempo da sua vinda, Cristo disse: "Daquele dia e hora, porém, ninguém sabe, nem os anjos do céu, nem o Filho. Não é dado a vocês conhecer tempos ou momentos". Ele tinha deixado essas coisas ocultas, de forma que nós pudéssemos estar vigilantes, cada um de nós pensando que ele viria nos nossos dias. Se ele tivesse revelado o tempo da sua vinda, ela teria perdido o seu interesse: não seria mais um objeto de desejo para as nações e para a era em que ela se cumpriria. Ele prometeu que ele viria, mas não disse quando viria, e, portanto, todas as gerações e eras aguardam-no ansiosamente.

Ainda que o Senhor tenha estabelecido os sinais da sua vida, o tempo do seu cumprimento não foi revelado especificamente. Estes sinais vieram e foram com uma multiplicidade de variações; mais do que isto, eles estão ainda presentes. Sua vinda final será como a primeira. Assim como os santos homens e profetas esperavam por ele, pensando que ele se revelaria a si mesmo nos seus próprios dias, hoje cada um dos fiéis anseia por recebê-lo nos seus próprios dias, porque Jesus não especificou o dia de sua volta.

E ele não revelou este dia por uma razão especial, a de que ninguém possa pensar que aquele cujo poder e domínio comanda todos os números e tempos é governado pelo destino e pelo tempo. Ele descreve os sinais da sua volta; como poderia ser que algo que ele próprio decidisse ficasse oculto a si mesmo? Portanto, ele usou estas palavras para aumentar o respeito pelos sinais da sua volta, para que daquele dia em diante todas as gerações e eras poderiam imaginar que ele voltaria nos seus próprios dias.

Portanto, vigilai! Quando o corpo está dormente, a natureza toma controle de nós, e o que é feito não é feito por nossa vontade, mas pela força, pelo impulso da natureza. Quando profunda languidez toma posse da alma, por exemplo, depressão e melancolia, o inimigo usurpa o poder da situação e faz com que façamos o que não deveríamos fazer. A força da natureza, a inimiga da alma, está no controle.

Quando o Senhor nos ordena a sermos vigilantes, ele quer dizer vigilância em todas as partes do homem: no corpo, contra a tendência a dormir; na alma, contra a letargia e timidez. Como dizem as Escrituras: "Despertai, ó justos", e "Eu ressuscitei, e ainda estou convosco"; e de novo, "Não se turbe o vosso coração". Portanto, tendo este ministério, não desfaleceremos.

"Comentário ao Diatessaron 18:15-17"

Fontes consultadas:

Dicionário Patrístico e de Antiguidades Cristãs. Petrópolis: Vozes; São Paulo: Paulus, 2002. Verbetes Edessa (pp. 443-444), Efrém Sírio (p.p. 458-460) e Nísibe (p. 1002)

DROBNER, Hubertus R. Manual de Patrologia. Petrópolis: Vozes, 2003. p.p. 540-541, 547-549

LACARRIÈRE, Jacques. Padres do Deserto. Homens Embriagados de Deus. São Paulo: Loyola, 1996. pp. 176-178

Santo Efrem, o Sírio. Disponível em http://www.ecclesia.com.br/ekklisia/biblioteca/padres_da_igreja/s_efren.htm

Edessa, Mesopotâmia. Disponível em http://en.wikipedia.org/wiki/Edessa%2C_Mesopotamia

Ephrem, the Syrian. Disponível em http://en.wikipedia.org/wiki/Ephrem_the_Syrian

School of Nisibis. Disponível em http://en.wikipedia.org/wiki/School_of_Nisibis

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